Ser Pensante

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"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Mas afinal o que é Rock n' Roll? Os óculos de Lucas ou o olhar de Orelha?





    Meus tempos de adolescente e minha geração reproduziram e prepararam o terreno para o que estava por vir: a instauração de uma definição definitiva (ao menos até aqui), de uma divisão de classes que se manifestava sobre o viés da divisão das tribos culturais e gêneros musicais. Isto ficou ainda mais evidente a mim quando pude atuar como docente na rede pública do município de São Paulo, no Ensino Fundamental. Ainda está fresca em minha memória a divisão que havia em muitas classes, principalmente no nono ano do ensino fundamental, que comporta alunos entre 14 e 15 anos, faze em que parecem estarem mais se identificando e se definindo com relação ás suas preferencias e gostos, dentre elas musicais e culturais.
   
    Em uma das classes em que eu lecionava, havia uma grande rixa entre o lado esquerdo da sala, que comportava na frente uma parte dos alunos que eram mais quietos e tímidos e no fundo um grupo de amigos que se identificavam com o rock e sempre carregavam consigo um livro ou um mangá, e a turma do meio e do lado direito, grande maioria, de alunos que se identificavam com o funk ostentação ou mesmo com estilos musicais como o pop e alguns com o rap. Era nítida também a diferença no que tange a estrutura familiar. Essa maior parte era composta pelos alunos que evidenciavam maior instabilidade economica. Eles mesmos já se taxavam, sendo a galera "da esquerda" a parte "desenvolvida culturalmente e mais interessada em estudar" da classe, e o resto "os pobres, ignorantes, perdidos e destinados a um trágico futuro" do funk ostentação. Claro que ao adentrar à sala de aula, sendo eu um professor jovem e que carregava uma estética que me identificava mais com a turma do rock do que com a galera do funk, os alunos "da esquerda" já tentavam me trazer para o seu lado, ou melhor, já tinham cravado que eu pertencia à sua tribo. Logo de cara vieram as criticas à turma "do meio e da direita", como "os alienados da classe que não merecem respeito". Mas, para a surpresa de todos, coube a mim fazer uma simples pergunta a classe: "Um rockeiro é melhor que um funkeiro? Por que? " A partir de então um extenso e contínuo diálogo, onde eu, como docente, tinha por preocupação desenvolver o pensamento crítico para além da identificação com determinados gêneros musicais, passou a fazer parte do cotidiano desta turma. Claro que com o passar do tempo os alunos "da esquerda" se mostraram muito mais interessados nessa abordagem, pois eram os mais interessados em tudo o que era proposto por qualquer professor, mas é nítido que houve ali uma revisão da "matéria dada" sobre o preconceito e falta de compreensão que criamos sobre o outro quando não observamos o contexto no qual este outro está inserido, é protagonista e os possíveis tempos históricos que produziram, moldaram ou influenciaram em sua ação comportamental, principalmente os fatores sócio econômicos. Essas passaram a ser abordagens tão importantes em minhas aulas, tanto quanto discussões como a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro em 1917. Aliás, esse foi um tema escolhido a dedo para o trato para com esta classe exclusivamente, pois traçava todo um processo histórico de exclusão que culminou no surgimento dos morros no Rio de Janeiro, o que consequentemente veio a calhar com a existência de diversas tribos culturais presentes em nosso tempo histórico, com a galera do funk ostentação que compunha a grande parte daquela classe. De cara não consegui estabelecer a ponte entre os alunos "da esquerda" e do "centro-direita", tal qual esta ponte  que por muitas vezes se estabelece no mundo dos adultos pelos rótulos e resumos das pessoas que fazemos diariamente, tanto no campo da política quanto para além dele. Tanto Lucas e Orelha como Scalete, na final do Superstar, quanto a classe em que eu estudei nos anos 1990 e as classes em que lecionei na segunda década dos anos 2000, evidenciavam essa luta de classes, que pode ser compreendida sobre o viés do econômico, mas que vai para além dela.

    Estas gerações, tanto do final dos anos 1990 como do início do presente século, especialmente no Brasil, foram engolidas pela Indústria cultural (abordamos o conceito no texto anterior), que visa, antes de tudo, a manutenção do status quo. O sistema capitalista dita as regras do jogo economicamente, mas culturalmente o espaço ideológico sempre está em disputa. Nesta disputa, a apropriação do rock como gênero de pessoas bem estabilizadas cultural e economicamente, e a forma como ritmos como o funk e o rap passaram a serem taxados como expressões de um povo pobre, desprovido de educação e cultura, afastaram não só da população a construção histórica sobre estes gêneros musicais, mas também a realidade dos mesmos, fazendo com que ambos deixassem de ser instrumentos de contestação, tal qual o foram em sua origem, no sentido de construção ideológica por meio da postura dos artistas e de suas letras. Nesse sentido, o rap e o funk no Brasil ainda comporta alguns artistas que contestam a apropriação do mercado e da mídia feita sobre seus gêneros musicais, mas o rock, de fato, já abraçou o deus mercado e caiu no erro já alertado pelas escrituras bíblicas tão conhecido: não se poder servir a deus (sua causa ou ideal), e à Mamon (dinheiro, sistema). E aqui cabe a pergunta que dá título a este texto.

    Se a origem do rock nos remete a um movimento de classes sociais menos abastadas economicamente e que estavam sofrendo um verdadeiro estupro cultural, fruto da colonização, escravidão e imperialismo ao longo dos séculos do europeu sobre os povos negros e latino-americanos, evidenciado assim a ascensão de um movimento cultural e gênero contestador, e perdeu isso ao longo dos tempos, quem mais estaria representando essa "atitude rock and roll" e fazendo as pedras rolarem na final do Superstar: a banda de som pesado que fala sobre amor e crises existenciais, que tem como atrativo um vocalista branco, loiro, de olhos azuis, hétero sexual e de origem econômica bem estabilizada, ou a dupla de garotos de 17 anos de idade, vindos da periferia do Rio de Janeiro negros, sendo um deles portador de uma deficiência visual e representantes de um gênero musical que denota grande influencia do soul e do funk music sobre o pop que fazem? Bom, por mais que você não consiga enxergar em Lucas e Orelha atitude as influencias do Rock que estou apresentando, que ao meu ver se evidenciam em suas vidas e propostas, e não unicamente em suas letras apresentadas ou na forma como abraçam a mídia, principalmente a global que sempre se posiciona contra as populações mais pobres (isso o Scalete também está fazendo, só pra constar), os comentários nas redes sociais preconceituosos referentes a dupla já evidenciam que eles fizeram as pedras rolarem.



    O que podemos refletir e concluir de tudo o que foi exposto até aqui é a necessidade, que se faz urgente, de apropriação da intelectualidade e do pensamento critico sobre o mundo que nos cerca e que abarca questões múltiplas para além do que a indústria cultural quer nos impor como leitura. Os óculos para vermos sobre o que está posta a representatividade de Lucas e os ouvidos para ouvirmos o que Orelha está cantando para além daquilo que está cantando, se fazem urgentes se quisermos lutar contra toda a espécie de opressão e preconceito. Entender que Scalete é uma boa banda de Rock no sentido musical, mas que o rock se estende para muito além de bons acorde riffs e composição melódica, e que sempre foi característico deste genero (isto pré indústria cultural) a contestação do status quo vigente, e isto evidencia que Scalete talvez seja uma boa banda, que toque rock mas que não faça as pedras rolarem como Lucas e Orelha, talvez sejam elementos básicos para levarmos a qualquer público, seja ele de Lucas, seja ele de Orelha, seja ele dos jovens que sentam ao fundo na "esquerda" ou que compõem a classe quase que em um todo no "centro-direita", podem ser pontes para o incio de um reflexão e atitudes que venham a libertar definitivamente nossa geração e as gerações posteriores das amarras ideológicas do mercado cultural. Nesse sentido, não precisamos que Lucas e Orelha sejam os novos Tupac e Sabotage necessariamente, maos podem enxergar neles está mensagem, simplesmente pelo que os compoem enquanto classe social e produto de todo um processo histórico, sendo eles, só por isso e ao meu cer, a verdadeira expressão do rock que empurra as pedras ladeira abaixo sobre o preconceito.

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