Ser Pensante

Ser Pensante
"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Lamentações de um Jeremias do século XXI: A coletivização da felicidade como a superação do instinto





     Dentre as tantas verdades postas pelos sãos e sábios do presente século, a mais  aceita, indiscutivelmente, é a da felicidade colhida pelos crentes no nazareno. A morte não tem mais poder sobre eles e, consequentemente, tornou-se conveniente passar longe de qualquer possibilidade de abraça-la. Seja o que for, o homem que se sacrificou por todos, livrará de qualquer perseguição, desavença, humilhação ou até mesmo sacrifício, somente os que nele crerem. Sendo assim, a felicidade torna-se não apenas um fator que se faz presente de maneira natural ao indivíduo que professa esta crença, mas também obrigatória. Não ser feliz, não ser um vencedor, passa a ser considerado, ironicamente de maneira natural, como algo anômalo frente o coletivo. O sacrífico posto como a maior causa para o efeito que resulta na massa uma intensa admiração pelo cordeiro imolado pelo coletivo, passa a ser usado para justificar a felicidade subjetiva. É o solipsismo dos discursos de interesse coletivo que visam apenas os interesses individuais.

     A tristeza da contra-cultura não cabe dentro do conceito de felicidade de quem recebe o Cristo. Receber o Cristo é o ápice da vitória, neste mundo e em quantos mais existirem. Ser eterno como Deus, e ser feliz, se possível, até da forma como muito provavelmente o Deus que professam ter vindo ao mundo como homem não foi, superando-o, pelo seu sacrifício que no caso propiciaria esta possibilidade. Ser contra-cultural é se sacrificar, é abraçar a insanidade do "em prol do todo" e com ela a crucificação dos homens da lei que assinam na Terra e tem o apoio dos celestes sobre a sua pena.

    Não vejo outra coisa no Cristo se não a procura pela perda. A perda de si pelo todo, que gera o verdadeiro lucro. O único lucro, se perspectivarmos o lucro da maneira mais sincera e cristocêntrica possível, está na superação do instinto pelo  pelo prazer plural, que muitas vezes sacrifica o singular e tira dele o que ele poderia vir a ter. Levar a vida para não faltar amor. Não ser um vencedor, dentro dos conceitos seculares frente a vitória. A vitória tende a tornar-se não mais a derrota do outro, mas a superação que emerge de uma tentativa em superar a ganância  do si sem dó, o que viria a harmonizar a alma, de maneira a afiná-la. Não só uma, mas duas, três, quantas vezes forem necessárias.

    Cristo: perdeu a sua vida para ganhar as outras, chamou de bem aventurado o que chora, aconselhou os seus a abaixarem as suas armas frente o levante do inimigo e,  não contente com isso, pediu para que orassem, invocando bençãos dos céus sobre os que os afrontavam.  O mesmo homem que retirou-se em desertos e jardins, e que por muitas vezes se sentiu só, e que em algumas delas esteve acompanhado apenas por seus inimigos. Esse mesmo Cristo, o que decidiu apresentar-se a nós tendo como cartão de visitas uma bela paisagem, com cavalos, bois, galinhas, urinas e fezes dos mesmos perto de si e de sua família, sendo o mesmo apenas um bebê; o mesmo homem que mesmo sendo aguardado como Rei e cobrado por não atuar à lá Maquiavel, decidindo lavar pés, inclusive de quem viria a traí-lo, quer que você seja absolutamente feliz, dentro de um conceito de felicidade que só cabe ao indivíduo, e não ao todo.

     Que os teólogos hedonistas, narcisistas, nietzschianos e demais adeptos da busca pelo prazer presente no instinto não me ouçam, a não ser que reflitam no que nos é apresentado pelos chamados evangelhos, mas sou ateu com relação a essa felicidade.

     Bem aventurados os que choram. 
    

 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

A corça e o tigre



    Um tigre caçava uma corça, mas ela fugiu pulando e gritando na direção de um precipício. Ela pulou. O tigre também. Ambos morreram.
    Yulizi* fez um comentário:

— A corça precisava pular, pois, tendo o precipício na frente e o tigre atrás, não havia outra saída. Se a corça voltasse, seria devorada. Se pulasse no precipício, haveria uma pequena chance de se salvar, o que, em último caso, seria melhor do que ser devorada pelo tigre. Já o tigre, poderia parar ou seguir adiante, dependendo de sua vontade.



— Então, por que ele escolheu pular e morrer junto com a corça?

— Se a corça não tivesse pulado, o tigre não teria morrido. Isso mostra a estupidez do tigre diante da habilidade da corça. Os que são despóticos e avarentos como os tigres bem que poderiam aprender essa lição.

Liu Jiu




*Yulizi é o pseudônimo do escritor Liu Jiu (1311-1375). Em "Os autores", no fim deste livro, há uma nota sobre ele.

CAPPARELLI, Sérgio e SCHMALTZ, Márcia. Fábulas Chinesas. L&PM POCKET, p 26.


terça-feira, 16 de julho de 2013

MANHÃ CINZENTA




     Sim, hoje é uma daquelas manhãs cinzentas, que eu me levanto sem saber o porque, manhãs a qual eu deveria ter riscado do meu calendário, manhãs que eu espero por um amor que você não é, por um amor que eu não sei quem é, um amor que nem eu mesmo sei ser, tentando ser alguém eu sou apenas mais um na multidão, mais um que segue o fluxo do rebanho que segue desorientado pelos pastos verdejantes desta vida. 

    De tanto ver prosperar o ódio daqueles que dizem fazer isso em nome do amor o homem chega a desanimar de existir, ao ver tanta segregação onde muitos chamam de congregação, ver almas espalhadas e vidas destroçadas onde muitos chamam de ajuntamento, assim é pelo chão desta nação, assim é até além do mar, onde o prazer se torna risco de morte, ser quem se é pode custar caro demais. Daí você observa o mal triunfar sobre o bem, o ódio sobre o amor, a emoção sobre a razão, o fútil sobre o coerente, o esquizofrênico sobre o lucido. 

    O carimbo da tragédia é quando você observa muitos na Igreja preocupados com a data em que o padre ou pastor irá celebrar seus casamentos, enquanto você se preocupa com a data em que ele vai celebrar seu funeral. Se eu morrer antes dos 30 ou 40, não julguem ser este um castigo eterno ou que pago por algum pecado grave e oculto, mas entendam como uma resposta de Deus a minha oração, pois vejo a solução desse mundo injusto e segregador algo tão distante.  Mas se Nosso Senhor quiser e permitir que viva eu por 60, 70, 80, 90 anos ou mais, cumprirei minha tarefa e missão até Ele me recolher, caminhando em direção desta utopia, que mesmo nas manhãs mais cinzentas me encoraja a não desistir de chegar ao horizonte e tocar ao céu, não pra me gloriar, mas pra levar comigo todos aqueles que entendem que o sentido da vida é viver, pois viver com amor faz a valer muito mais, viver acreditando no amor, mesmo que não o sinta.

por Rafael Muniz (escritor e filósofo contemporâneo)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Oração de Nietzsche: Ao Deus desconhecido





Oração de Nietzsche: Ao Deus desconhecido 


01/04/2011

 Muitos só conhecem de Nitzsche a frase “Deus está morto”. Não se trata do Deus vivo que é imortal. Mas do Deus da metafísica, das representações religiosas e culturais, feitas apenas para acalmar as pessoas e impedir que se confrontem com os desafios da condição humana. Esse Deus é somente uma representação e uma imagem. É bom que morra para liberar o Deus vivo. Mas não devemos confundir imagem de Deus com Deus como realidade essencial. Nietzsche estudou teologia. Eu pude dar uma palestra na Universidade de Basel na sala em que ele dava aulas, quando fui professor visitante em 1998 lá. Essa oração que aqui se publica é desconhecida por muitos, até por estudiosos do filósofo. Por isso no final indico as fontes em alemão de onde fiz a tradução. No original, com rimas, é de grande beleza. LB

 Oração ao Deus desconhecido

 Antes de prosseguir no meu caminho
 E lançar o meu olhar para frente
 Uma vez mais elevo, só, minhas mãos a Ti, 
Na direção de quem eu fujo.
 A Ti, das profundezas do meu coração, 
Tenho dedicado altares festivos, 
Para que em cada momento
 Tua voz me possa chamar.
Sobre esses altares está gravada em fogo Esta palavra: “ao Deus desconhecido” 
Eu sou teu, embora até o presente 
Me tenha associado aos sacrílegos.
 Eu sou teu, não obstante os laços
 Me puxarem para o abismo.
 Mesmo querendo fugir 
Sinto-me forçado a servi-Te.
 Eu quero Te conhecer, ó Desconhecido!
 Tu que que me penetras a alma 
E qual turbilhão invades minha vida. 
Tu, o Incompreensível, meu Semelhante.
 Quero Te conhecer e a Ti servir. 

 Friedrich Nietzsche (1844-1900) em Lyrisches und Spruchhaftes (1858-1888). O texto em alemão pode ser encontrado em Die schönsten Gedichte von Friederich Nietzsche, Diogenes Taschenbuch, Zürich 2000, 11-12 ou em F.Nietzsche, Gedichte, Diogenes Verlag, Zurich 1994.

sábado, 13 de julho de 2013

A tentação do Jesus do século XXI




Então foi conduzido Jesus pela Sabedoria ao subúrbio, para ser tentado pela Luxúria.

E, tendo deixado seu carro, notebook, Tv de Led e todos seus instrumentos de prazer pessoas parados  por quarenta dias e quarenta noites, depois teve vontade ;

E, chegando-se a ele o tentador, disse: Se tu és o Filho de Deus, manda que estes postes se transformem em grandes holofotes, com batidas eletrônicas, que se façam sobre eles grandes palcos para seu deleite.

Ele, porém, respondendo, disse: Está escrito: Nem só de prazeres oferecidos pelo sistema viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.

Então o diabo o transportou à Nova Iorque, e colocou-o sobre o terraço do Empire State.
E disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces em boeiro a céu aberto.

Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Amigo Fiel,  o Criador.
Novamente o transportou o diabo a um prédio também grande, chamado Palácio W. Zarzur;e mostrou-lhe todos os outros prédio da cidade de São Paulo, e a glória deles.

E disse-lhe: Tudo isto te darei se, prostrado, adorares a luxúria do capital.

Então disse-lhe Jesus: Vai-te, Luxúria, porque está escrito: Ao Amigo,  adorarás, e só ao bem que  ele propõe para que todos sejam livres, servirás.

Então a Luxúria o deixou; e, eis que chegaram os que tentavam ser como ele, e o fizeram companhia.

Mateus 4:1-11

quinta-feira, 11 de julho de 2013

O que Deus teria a dizer sobre Deus?






Um dos mais belos textos sobre Deus que já pude ler. Spinoza: um dos maiores "hereges" de todos os tempos.

"Pára de ficar rezando e batendo no peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.

Pára de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa.

Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.

Pára de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau.

O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.

Pára de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho... Não me encontrarás em nenhum livro!

Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?

Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor.

Pára de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz... Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?

Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti.

Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção à tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.

Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas.

Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro.

Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.

Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho. Vive como se não houvesse. Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei.

E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste... Do que mais gostaste? O que aprendeste?

Pára de crer em mim - crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.

Pára de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja?

Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que agradeçam. Tu te sentes grato?

Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. Te sentes olhado, surpreendido? Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar.

Pára de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações?

Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro... aí é que estou, batendo em ti."


Baruch de Espinoza