Ser Pensante

Ser Pensante
"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O chaveiro da Casa sem portas - Parte 5





Essa era apenas uma das dúvidas que Vincent suscitava com relação aos posicionamentos de seu pai frente determinadas questões. Uma de muitas. Vincent fazia questão de ser o senhor das dúvidas.  A verdade era que Vincent desejava ser o senhor de si mesmo. Mas, não podemos dizer que Vincent chegava a ser arrogante, afinal de contas, todos nós queremos ser donos de nossos próprios trajetos. Todas as dúvidas levantadas por Vincent, desde o posicionamento que seu pai tinha diante de uma simples discussão futebolística até as coisas mais complexas tinham no fundo um único intuito: a independência da mesmice. Coisas de adolescente? Não se sabe. Vincent se um dia foi de fato jovem, só ô fora na idade. Suas percepções e responsabilidades passavam longe da condição de um efebo qualquer. Perceberemos logo um dos bons motivos para tal precoce amadurecimento.

 A bela e sofrida Rosa. Muito cedo deixou a casa dos “Dos Santos” para possivelmente viver entre aqueles que, acaso existissem, fossem os santos de verdade. Este era o nome da mãe de Vincent que ele nem chegou a conhecer. Sua parição foi a causa da morte da mãe e também da perda da sua mocidade. Sempre repousaram sob seus ombros a responsabilidade de honrar as expectativas da família. Se não fora seu pai um agente direto da mudança em sua pequena cidade, esperava-se que Vincent fosse a mudança ao menos no seu quadro familiar. Tinha nome importante já por este intuito. Mas o próprio Martinho já provara que mudanças não se fazem por epítetos.

Rosa não fora uma pessoa que perspectivava sob o filho que carregava ideais revolucionários. Dizia que ficaria muito contente se o filho ao menos se formasse. De preferência em Medicina, profissão esta que segundo ela era nobre e dava bom retorno financeiro. Mas, de fato, em uma família tão simples como a sua, esperar que um filho se tornasse médico já seria, de fato, esperar dele uma grande revolução frente seus ascendentes.

A escolha do nome do filho veio unicamente do pai, e Rosa muito estranhara que Martinho quisesse extrair a última letra de Vicente. Nunca entendeu bem o motivo que levara Martinho a escolher tal alcunha a uma simples criança. Não via graça nem desgraça na escolha. Apenas pensava ser tal opção do pai, coisa de gente pobre que quer ser grande, como se pobreza fosse sinônimo de pequenez.

Rosa não vira o filho se tornar grande desde pequeno. Martinho nunca contou muito ao filho sobre a mãe, já que o homem não era de muitas palavras. Tornou-se um homem de ainda menos prosa depois da viuvez precoce. Vincent também nunca especulou muito sobre o caso. Ocupou-se unicamente em não importunar o pai com tais questões, já que o importunava com outras. Mas, com isto, descobriu logo cedo que, a cada manhã que suas dúvidas sobre sua mãe eram silenciadas, quem se tornava importunada era sua alma. O silêncio pode molestar a alma. E isto o jovem que se tornará velho demais dia a dia, descobriu muito cedo.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Indiferença à diferença



Quem és tu para que me confundas a alma?
E quem sou eu
 Para que me julgue distante da paz de espírito?
Bem sei, e como sei
Que não basta só ter a barriga cheia 
 Para que a alma esteja nutrida
E que também não é possível passar pela glória sem a ruína
De toda sorte, sei que minha tristeza é menor que a de muitos
Isso há muitos consola
Mas a mim penaliza
Não se pode estar farto se outro está fraco
E não se vê força alguma
Em braços que se cruzam perante a dor de um semelhante
Diferença? Nunca existiu
Se existe, é porque nós a tecemos todos os dias
Nós a criamos indiferentes à ela
Não há sentido na dor, se ela for solitária
Só há sentido na dor, se ela corrói pelo outro
Se ela corrói pelo todo
E quando a minha dor for solitária
Quero saber que no outro ela existe
Convido-me a sofrer com ele
E nos curarmos sozinhos da diferença
Que a nossa indiferença criou
Ao ter a minha memória refrescada
Ao ver os males dos homens
Prometo não mais ver justiça
No meu tolo choro
Só posso concordar que
Tudo é vaidade

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Carta aos angustiados




Não se pode esperar um movimento revolucionário de um povo que não se vê necessitado de mudança. O masoquismo tem sido a alcunha que representa a grande massa. Os poucos que ousaram efetivamente pensar frustram-se por estarem de mãos atadas tendo em vista que, na atual conjuntura socioeconômica, uma única andorinha realmente não pode fazer verão.

Aos que sentem o peso da angústia do esclarecimento, resta a espera, ou pela morte coletiva, que já é praticamente certa, independente de profecias apocalípticas ou não, ou da saída para a vida coletiva, que chegaria a ser praticamente uma ressurreição. Não há outra forma de se alcançar a plena felicidade senão no mais profundo cerne da coletividade. E tem sido exatamente pela constituição individualista e mesquinha de nossa sociedade que a felicidade se encontra há anos luz distante dos homens.

Leve-se em conta que o que chamo felicidade não pode, de maneira alguma, ser confundida com a realização pessoal e momentânea que proporciona o sistema até aqui citado, a uma parte da humanidade. Todo indivíduo que opta por se manter esclarecido de que, na atual conjuntura, toda conquista material de um representa a perda material de outros ou muitos, dificilmente terá a honestidade de se dizer convicto de estar plenamente satisfeito e feliz, estando distante da angústia do presente século por completo.

Se pensar de maneira ética é pensar no bem estar comum do todo, sem deixar ninguém para trás, a ética está tão próxima dos homens como Deus está do diabo.

O chaveiro da Casa sem portas - Parte 4





Vincent nunca se acostumou muito com a ideia de assiduidade aos cultos da congregação frequentada por seu pai na cidade grande. Talvez tivesse herdado do pai tal comportamento. Pouca coisa Vincent herdou do pai. Já foram destacadas duas, talvez as mais importantes para entendermos Vincent. Mas, algumas outras mais podem ser de grande utilidade para o desenrolar dos fatos na vida do tenro chaveiro.

Se do pai herdou o desgosto pela assiduidade aos cultos, com ela veio acompanhada a paixão pelo futebol. De longe era o assunto mais comentado na loja em que trabalhava. Era de longe também o tipo de assunto em que o pai mais fazia questão de esboçar algo ligeiramente mais incomum aos seus curtos comentários feitos de costume. Do pai também herdou a paixão por seu clube. Nesse aspecto, Vincent não estava muito distinto dos garotos que o cercavam. Tomemos por conta que poucas vezes Vincent realmente foi garoto, e das vezes que foi estava ou com uma bola nos pés ou com a mesma dentro de uma caixinha preta, fixado em frente a mesma, as quartas e domingos. Coincidentemente, nos mesmos dias em que aconteciam os cultos religiosos. Muito provavelmente a paixão pelo futebol fosse maior em Vincent do que o gosto, que por sinal era mínimo, que ele tinha pela rotina congregacional.

Vez ou outra o pastor da comunidade eclesiástica frequentada por Seu Martinho, visitava a sua loja. Martinho, sempre fiel em suas contribuições financeiras para com a comunidade, era acompanhado de perto pelo pastor amigo, que se tornava ainda muito mais amigo quando compartilhavam das poucas coisas que tinham em comum. Na verdade era apenas uma que tinham por similar: o futebol. Tudo bem que eles mantinham algum contato para a prosa muito mais por conta do pastor fazer o trajeto da sua casa para o trabalho e, ás vezes, do trabalho para o templo, passando em frente à loja de Martinho. Depois de umas tantas visitas à loja, o pastor começou a observar melhor o filho de Martinho e lhe perguntou:

- Ora rapaz, como você se chama mesmo?

- Vincent, senhor.

- Vejam só, que belo nome! Concordas que tens um nome incomum?

-Sim.

Poucas palavras. Vincent não era de muito falatório quando o assunto pouco lhe interessava. Na verdade, de todos que passavam pela loja, poucos traziam algo que de fato lhe interessasse. O pastor geralmente falava de futebol com seu pai, que por sinal, mesmo que Vincent quisesse participar um pouco mais da conversa, não o fazia por falta de espaço. As conversas sobre o esporte tão bem quisto geralmente eram muito saudosistas e Vincent tinha apenas dezessete anos de idade.

Os outros geralmente seguiam o pastor como boas ovelhas, sempre preocupadas com o mesmo tipo de assunto. Geralmente iam para o trabalho com a seguinte dúvida:

- Quem será que vai ganhar hoje? Qual a sua opinião chaveiro?

 Na volta, a pergunta costumava ser um pouco reformulada. Geralmente um tanto mais sarcástica e pouco mais objetiva.

- Qual a sua opinião sobre o jogo de hoje Martinho? Quem o senhor acha que vai ganhar?

Geralmente as respostas de Seu Martinho eram parciais e bem políticas, mesmo que uma opinião a favor de seu time estivesse em jogo. Martinho levava jeito para ser comentarista nos grandes canais de televisão e rádio da sua época.

- Nosso time está bem arrumado. Tem um bom meio campo e uma boa defesa. Acredito que tenha grande chance de sair com a vitória. Mas o adversário tem um grande ataque e um bom goleiro, além dos alas que bem apoiam. Com certeza pode sair vitorioso. Pode ser também que dê um belo empate.

Vincent observava com cautela e inquietação tais posicionamentos do pai que não se refletiam só no que diz respeito à vida futebolística, mas a quase tudo nesta vida. O pai sempre fazia questão de lhe exortar repetidamente, percebendo as inquietações do filho.

- Pouco comprometimento tenho tido para com as reuniões congregacionais meu filho, principalmente as dominicais. Mas delas consegui extrair algo, ainda que seja pouco. Por isso te digo que em todo e qualquer assunto, se possível, tende paz com todos.

Vincent entendia o conselho do pai e via alguma sabedoria nisso, mas começava a estranhar este conceito de paz criado pelo pai, muito mais próximo de passividade do que de pacifismo, ainda que o pensamento do garoto não se formulasse exatamente desta forma, com tais conceitos. Começou a pensar mais sobre o assunto, a fim de planejar chegar à fonte destas palavras pronunciadas pelo pai por muitas vezes, para que, quem sabe entendendo a fonte, pudesse entender a estranheza que sentia frente os conselhos dados pelo pai.

domingo, 9 de dezembro de 2012

O chaveiro da Casa sem portas - Parte 3





   Nome dado, talvez bem dado. O fato é que Martinho cresceu e muito aprendeu com o pai no que diz respeito à arte de copiar chaves. O pai só se lembrou da tal teologia quando foi chegada a hora de nominar o filho, e o filho só se deparava com a mesma aos domingos (apenas alguns), único dia da semana em que visitava a pequena congregação da qual lhe nascera o nome. Isto quando de fato a tal teologia aparecia na congregação. Talvez ela fosse ainda menos frequente que Martinho e seu pai. Eis aí algo mais que aproximavam Martinho e a tal teologia: a pouca frequência aos cultos.

    Martinho cresceu ouvindo muita coisa e entendendo menos da metade delas. Trindade, salvação, céu e inferno, bom e mal, comer o corpo de Cristo e beber do seu sangue, arrebatamento, línguas estranhas, dom de maravilhas, destas coisas todas, nem metade Martinho entendia. Mas de uma coisa ele sabia e fazia questão de lembrar-se de todo dia:

- O meu nome é importante, pois vem do tal de protestante.

    Martinho nunca entendeu muito bem a casualidade do tal protesto do homem que originou sua alcunha. O pouco que sabia era que o homem tinha tido algumas desavenças com os padres. Isso ele não entendia muito bem. Pessoalizava a história de seu nome a todo o tempo. Nunca foi lá muito simpático ao padre da cidade, que por sinal tinha muito mais carisma do que todos os pastores que já haviam passado pela congregação por ele frequentada. Não entendia muito bem o porquê protestar contra um padre, já que a única imagem que tinha de um padre era a do que ele conhecia pessoalmente. Também não tinha toda simpatia do mundo pelo padre, já que o padre não falava de futebol nem das garotas mais belas da cidade, que eram os dois assuntos que mais interessavam a Martinho. Nesse ponto, os pastores que Martinho conheceu pareciam-lhe mais cativantes. Mas, ainda sim, esse motivo não era suficiente para Martinho protestar contra o padre, como fez o seu tocaio.

  Martinho cresceu e aos poucos foi deixando de lado a busca pelo que protestar para desgosto do pai. Como dito antes, Martinho estava mais ocupado com o galanteio às garotas e os gols do seu time do coração, e não havia quem lhe convencesse de que havia coisa melhor para se observar no quotidiano. Seu Arnaldo lhe deu o nome, mas não os motivos para que ele protestasse e desse algum sentido ao seu epíteto. A pequena cidade, aparentemente, também não lhe dava bons motivos para protestar. Tudo muito pacato, tudo muito sereno, e Seu Arnaldo transmitiu ao filho juntamente com o nome, a pré-disposição em ver que tudo estava bom como estava e sempre estaria, e que se algum dia viesse a ser diferente disto, era preciso em tudo dar graças. Aos olhos de Seu Arnaldo, não parecia contraditório ter um filho que tivesse o nome em alusão ao tal de protestante, mas que desse graças por tudo e que não visse mal em nada. 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O chaveiro da Casa sem portas - Parte 2




O senhor Martinho especializou-se na arte de copiar chaves. Sua loja, muito bem localizada em um bairro bem movimentado da capital paulistana, sempre foi bem frequentada. Martinho nunca foi lá muito atento às conversas que circulavam no estabelecimento. Isso não queria dizer que ele fosse exatamente desatento para com a clientela. Na verdade, a atenção de Martinho estava toda  em fazer o serviço bem feito, e de “sim, sim” e “não, não”, que poucas vezes eram substituídos pelo seu pensativo e longo ‘hum”, o bom chaveiro envolvia-se com os curiosos casos levantados pelos clientes. Ora, de fato sua clientela não era da mais alta camada da intelectualidade social, nem tampouco da mais tenra classe dos desprovidos de esclarecimento. Sua clientela era composta de gente simples como ele, mas que estava um pouco mais acostumada a questionar a vida, ainda que raramente.

    Não é por acaso que o senhor Martinho não se ocupava muito em aventurar-se nas nuances, um tanto quanto filosóficas, de seus bem quistos fregueses. Martinho, homem bem acostumado com os costumes, não se queixava muito da vida e estava sempre a afirmar:

- É preciso dar graças! Em tudo, dar graças.

    Martinho não era dos mais religiosos, levando-se em conta  aquilo que os seus entendiam como ‘mais religioso” era reconhecido pelo fato de um individuo estar presente e ativo em algum tipo de comunidade religiosa, com alguma organização (ainda que mínima) eclesiástica. O homem nunca foi lá de muito compromisso para com a pequena comunidade cristã que frequentava, a dois passos de sua casa, e de mais uns dois de sua loja. O nome que têm veio exatamente da criação que teve. E muito provavelmente, assim como seu filho, talvez não tivesse chegado a conhecer um pouco mais sobre suas próprias crenças se não fosse pelo nome que seu pai graciosamente havia lhe cedido. Esta história ele estava cansado de ouvir desde criança, tal qual Vincent estava cansado de ouvir também.

- Foi num belo culto de Natal, na pequena igrejinha de minha simples cidadezinha que nasceu seu nome, filho meu. Ah! Se não tivesse anunciado que naquele dia viria o homem douto da capital, talvez eu não tivesse ido àquele culto, nem seria quem sou, nem você existiria e, se viesse a existir, teria um nome mais belo, mas com toda a certeza, nem um pouco mais ilustre.

    Sim. Esta era a história do pai de Martinho. Seu Arnaldo, mais conhecido na cidade como “o homem das chaves”, também não era lá homem muito interessado em política, religião e todas essas coisas que ele dizia serem bem admiradas pelos “homens doutos da cidade grande”. Mas, vez ou outra, o simples homem em meio a ociosidade do tempo vago que se tinha em sua loja, questionava boa parte do que ouvia e até mesmo do que ele mesmo dizia aos que lhe ouviam. Muitas certezas e poucas dúvidas, mas destas poucas nasceram a visita àquele culto. O homem estava ansioso. Há mais de dois meses já havia observado o anúncio na porta da igreja e o assunto era bem comentado entre os poucos clientes que tinha.

- Ora, não acontece nada de novo nessa cidade, Seu Arnaldo! Borá lá, nem que for de abelhudice, ver o tal de protestante!

     Entre os fiéis da pequena cidade o tal do termo muito ouriçava. E diziam que o homem, além de protestante era formado na tal teologia. Outros diziam até que era historiador. Outros que ele seria um grande psicólogo também, ainda que não soubessem exatamente o que seria este "nome chique" e outros mais ainda, que o tal homem era milagreiro dos bons e que não cobrava nada além de um abraço do felizardo que fosse curado de qualquer mal por uma simples palavra dele.

- Eita coisa doida! Tenho que ver esse diacho de protestante que além de protestar na igreja, ainda é doutor da tal teologia.

    Chegado o dia do tão esperado culto de Natal, eis que, depois de algumas belas canções e uma peça de teatro interpretada pelos mais jovens da congregação, o tal do homem douto é convocado a se apresentar no púlpito do pequeno templo.

- Mais de duas horas de falatório, Argemiro. Deus do céu, eu não vi nada de protestante no tal homem. E de tudo que ele disse só me lembro do nome do homem que peitou os padres. Martinho. Nome simples e curto, que de tão curto foi a única coisa que ficou na minha mente. Mas de toda a forma, eu quero saber mais dessa tal teologia. E se essa tal teologia der algum tostão, tenho ainda mais interesse.

    Obviamente que passados alguns meses, Seu Arnaldo buscou conhecer um pouco mais a tal teologia. Nada de tão chique como insinuavam viu na coisa toda. Logo se desinteressou por conta dos nomes difíceis que viu dentre os poucos textos que leu da biblioteca escondida nas pequenas salas da igreja. Percebeu mais cedo ainda que a coisa toda não fosse lhe dar mais dinheiro do que as chaves que copiava. Principalmente por que de milagreiro ele nada tinha. Tampouco o tal do “homem douto e protestante”, para sua frustração. O maior milagre que o homem douto poderia fazer era convencer a todos que era douto. E o maior milagre que o Seu Arnaldo poderia fazer, até aquele momento, eram umas cópias de chaves muito bem feitas.

    De toda forma, o “homem das chaves” continuou com seus milagres e resolveu deixar de bisbilhotar a tal teologia. Só se lembrou da mesma quando o filho nasceu. E na falta de nome mais sugestivo, querendo que seu filho fosse santo mais nem tanto, o presenteou com “Martinho” de nome, e “ dos Santos” de sobrenome, sendo “Dos Santos” da família, pra honrar a tradição, e Martinho da tal teologia, pra ver se o tal menino fosse afim  de achar alguma coisa pra peitar e protestar, que de preferência não fosse o padre da cidade, que por sinal, não tinha nada a ver com isso.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O chaveiro da Casa sem portas - Parte 1



Possivelmente não teria chegado a conhecer a arte do impressionismo se não fosse por seu nome. Nome este graciosamente cedido por seu pai, que nada conhecia de arte além das músicas tidas como cafonas pelos ditos mais cultos. Para ele aquilo era a própria arte. Aliás, de artista o pai de Vincent dizia ter muito. Vincent cresceu e se apequenou ouvindo as canções do pai, que ele mesmo não acreditava ser de grande importância, mas que, por serem cantadas pelo homem que lhe aguçava os ouvidos ao falar das coisas simples da vida, se tornavam se não belas, (ou ao menos suportáveis). Delas e de seu pai Vincent tirou a inspiração para começar a pensar no que seria inspiração. Aliás, o próprio Vincent começou a assim pensar exatamente por perguntar a si mesmo se para respirar era necessário ter algum tipo de inspiração. Inspiração, respiração, inspiração, respiração. E nesse desencontro, se encontram todas as suas presentes dúvidas, e por que não dizer, as futuras também.

O garoto (que nunca foi garoto) chegou a certas conclusões na adolescência que não teve. Chegou a pensar que pensar não faria sentido algum, mas quando se viu pensando desta forma, as coisas já não faziam sentido há algum tempo. Ora, se falarmos só de Vincent não entenderemos o que de fato é Vincent, nem o que ele poderá vir a ser, muito menos o que ele quer ser. E, entendendo um pouco o que é e o que pode ser Vincent, quem sabe poderemos entender quem somos também. A história é um misto de eu com tu e de nós com eles. Mas, quase tudo que perdura os passos de Vincent, em meio às suas inspirações e respirações, têm um pouco a ver conosco. Seu pai, como já dito antes, só conhecia uma arte e só dela gostava: a da cafonice.

- Brega? O que é isso? Isso é bom ou ruim? Se o que ouço e gorjeio é isto que chamam de ‘brega”,  esse tal de “brega’ só pode ser algo excepcional!!!

É. A modéstia quase sempre esteve longe do pai de Vincent. Principalmente quando se tratava de música, um pouco mais quando se tratava de política e muitíssimo mais quando se pretendia dizer qualquer coisa relacionada ás suas crenças. Nesse contexto, Martinho, homem simples como boa parte dos homens interioranos que com ele pularam da infância à embriaguez da fase adulta em questão de meses, fez questão de ensinar ao filho que arte, fé e política eram algo que até poderia vir a ser interessante de se discutir, desde que o esperneio todo do debate não mudasse  a sua opinião sobre qualquer um dos assuntos. A coisa toda se tornaria ainda mais atrativa se o opositor da conversa referida se estrebuchasse e mudasse de opinião, ou desistisse de prosseguir com seu intuito em tentar dialogar sobre o referido ponto de vista entre qualquer dos assuntos citados acima. Vincent, que nunca foi criança nem adulto, achou isso bem esquisito desde o principio. Na verdade, ele chegou à conclusão de que tudo era bem insólito desde o princípio do princípio, sendo que o próprio princípio nunca foi lá muito claro. E isto, nunca chegou ao fim.

sábado, 20 de outubro de 2012

Medo da felicidade

   

Das cinco condições elucidadas por este russo, identificadas na mensagem vivida pelo tal nazareno, para que o homem alcance a felicidade, todas por conseguinte são negligenciadas por nós, que de maneira inacreditável, dizemos buscar a felicidade. Isto exatamente por vivermos de maneira contrária a medicação que nos foi receitada. O médico fez o diagnóstico, nos orientou visando guiar-nos à cura, mas temos insistido com o veneno, com o vício, com a busca pela morte.

    Estar em contato com a natureza, com o trabalho necessário, com a família, com todas as classes dos homens e ter boa saúde física, torna-se impossível para nós que vivemos segundo a doutrina deste mundo. Sendo assim, permanecendo nossas vidas moldadas pela lógica do trabalho involuntário que busca o consumo e que resulta ma vã morte, morremos sem vivermos, ou melhor, passamos por uma existência sem sentido, passando a felicidade a ser um horizonte utópico, que nunca deixará de ser um horizonte, tão pouco de ser utópica.

   Obrigado russo por me apresentar este tal nazareno.

    De igual forma, sou grato a ti Amigo por me apresentar uma vida verdadeira.

     E obrigado noite, por me trazer à tona o medo da felicidade.

      Sim. Nós temos medo da felicidade.
   

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Humanista? Cristo?!!






Não é de hoje que tenho sido testemunha de um levante ideológico que visa trazer tumulto pró status quo, no que diz respeito a uma importante discussão que todo indivíduo que se interesse, de fato, pela mensagem e práxis da fé cristã (e que a palavra cristã não seja tomada aqui em sentido de organização eclesiástica e institucional apenas) deve passar, afim de ter boa compreensão referente aos pressupostos em volta de tal temática. A problemática gira em torno da crítica que alguns homens doutos na fé fazem aos cristãos que se denominam libertários, ou que têm uma perspectiva teológica mais centrada em, ao menos, questionar a ordem vigente mais conhecida como ortodoxia, em fazerem confusão entre a mensagem de Cristo e o conceito filosófico conhecido como humanismo.

Inicialmente, gostaria de usar algumas obras que tenho em mãos que dão uma breve definição sobre o que vem a expressar de fato a palavra humanismo. Vejamos a definição sugerida pelo dicionário Houaiss[1]:



“substantivo masculino
1          movimento intelectual difundido na Europa durante a Renascença e inspirado na civilização greco-romana, que valorizava um saber crítico voltado para um maior conhecimento do homem e uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana
Exs.: o h. italiano
 o h. francês
2          Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: filosofia.
conjunto de doutrinas fundamentadas de maneira precípua nos interesses, potencialidades e faculdades do ser humano, sublinhando sua capacidade para a criação e transformação da realidade natural e social, e seu livre-arbítrio diante de pretensos poderes transcendentes, ou de condicionamentos naturais e históricos
3          vasta formação cultural que abrange o conhecimento das obras clássicas e o saber científico.”



Observem como o Houaiss faz distinção entre três possíveis intrepretaçoes frente o significado da palavra humanismo. Observe agora uma outra definição para a mesma palavra. Desta vez do Dicionário de Filosofia de Nicola Abbagnano:[2]

Esse termo é usado para indicar duas coisas diferentes: I) o movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda metade do séc. XIV, difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo a origem da cultura moderna; II) qualquer movimento filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do homem.


Podemos observar com facilidade que a definição acima também faz distinção entre possíveis interpretações para a palavra humanismo. Inicialmente, gostaria de me ater ao segundo conceito de ambas as obras que tentam definir o conceito.

Entendo que se levarmos em conta a segunda definição das obras requeridas, temos algo muito parecido com o que propõe Cristo e a própria narrativa bíblica como um todo. Mas, não soaria um absurdo dizer que Cristo e a própria Bíblia colocam o homem como o centro de tudo, já que o próprio Cristo seria maior que o homem e condena quem atribui a outro a centralidade que lhe cabe?[3] De fato isto soaria um tanto quanto estranho se entendermos que o humanismo visa tirar Deus do trono e colocar o homem sobre ele.

É de grande relevância levarmos em conta que existem diferentes tipos de humanismo, dentre eles, o humanismo cristão, o humanismo religioso, o humanismo renascentista etc. Porém, podemos considerar que todos têm as mesmas bases evidenciadas pelas definições que destaquei anteriormente, passando pela definição histórica do humanismo, obviamente.

Tomemos por consideração alguns pontos, crendo ser aqui desnecessário o uso das referências bíblicas em notas de rodapé para o que pretendo evidenciar. Pois bem, Deus fez o homem e o destacou sobre toda a natureza, dando-lhe autoridade sobre a mesma. O próprio Deus deixa evidente que sua criação lhe dava prazer e lhe servia de companhia. Deus, após ver que sua tão amada criação o rejeita desobedecendo-o, faz todo um plano mirabolante para ter novamente a sua criação como companheira. O plano mirabolante de Deus envolve o próprio Deus, fazendo com que o mesmo se entregue por toda a humanidade. Este Deus, feito homem, resume todas as possíveis leis criadas em nome Dele aos homens em dois mandamentos, que se complementam e que não são indissociáveis: amá-lo de toda a alma e amar ao outro que, assim como eu, é também humano.

Levando-se em conta que o humanismo é uma doutrina que visa colocar o homem como o centro do universo, não podemos ousar dizer que o Deus que cria e, este mesmo Deus que se dá a favor da criação é o maior dos humanistas? Bom, fica aqui a minha pergunta, ainda que eu não tenha total competência para abranger o tema na sua mais alta complexidade.

Por fim, gostaria de dizer que fico feliz em descobrir recentemente que não sou o único a ser considerado um grande equivocado ao misturar cristianismo e humanismo. O consagrado escritor russo Dostoievski, no cume de seu esplendor como romancista e homem, escreveu sua última obra intitulada Os irmãos Kamarazóvi e também foi visto como alguém que se equivocou ao apresentar Cristo como a personificação do humanismo no conto que contém a obra A parábola do grande inquisidor. Uma das falas de Dostoiveski na obra que bem elucidam seu caráter humanista[4]:
“Chamam-me psicólogo; não é verdade, sou apenas um realista no mais alto sentido, ou seja, retrato todas as profundezas da alma humana”
DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamázovi, SP: Martin Claret, 2004, p. 761


Mas, e você? Também acha que Cristo foi o grande símbolo do humanismo? Gostaria que pensasse comigo a respeito e, se possível, partilhasse da sua opinião sobre.

Paz e Sabedoria.

Ser Pensante, vulgo Denis.


[1] Definição extraída do dicionário Houaiss versão digital.
[2] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, São Paulo, p 518.
[3] Rm 11. 36; Mt 22.38
[4] DOSTOIEVSKI, F. Os irmãos Karamázovi, SP: Martin Claret, 2004, p. 761

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Verdade







Me disseram pra parar
Me exortaram pra fechar
Os meus olhos pro que há de mal
Mais então eu percebi
Que nos versos que cantei
Só pude falar do que eu vi

E o que eu vi era ruim
E eu não pude me conter
Comecei a entender
E logo a escrever
Foi em forma de canção
Que minha insatisfação
Soou nos ouvidos de quem sabe
Que a verdade quando quer
Teimar em aparecer
Surge alguém pra convencê-la
Á mostrar sua beleza

A beleza da verdade
Logo vai aparecer
E pro que ansioso espera
O desfecho do saber
Ô verá com roupas claras
Esbanjando perfeição
No som de uma canção
 Na voz de um violão

(Musica publicada no antigo blog www.dennisportell.blogspot.com, em 29 de agosto de 2010)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Escândalo



Eles se escandalizaram com as minhas palavras
Eu com o seu silêncio
Eles se escandalizaram com as minhas ações
Eu com vossa omissão
Eles me deram como morto
Vendido como escravo, revelei-me aos meus irmãos
Nunca acima deles
Nunca o primeiro
Fui abaixo
Sou o último
No país onde estou não existe verdade
Aqui o rei é a verdade
E sua rainha é a paz
Ousei lhes fazer um pedido
Que me concedessem liberdade eterna
Tive meu pedido concendido
Eis que a dádiva está posta
E minha voz só será entrelaçada ao silêncio
Quando em frente este Rei

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Alguns "Josés"...




"Todos seguimos nos sentindo muitas vezes como José, seja esta história verídica ou não.

 O fato é que muitos estão na espreita, escondidos atrás de uma falsa amizade, esperando o momento certo para golpear-nos, atirar-nos ao fundo do poço e ganhar algo por este feito.

 Os irmãos de José estão em todos lugares. E em todos os lugares estão alguns "Josés".

 Uns ainda no fundo do poço.

 Outros poucos estão no Egito.

 Conta-se nos dedos os que foram grandes por lá.

 O que não significa que Deus não esteja com todos eles.

Aprendi que nem sempre estar por cima é estar por cima."

Ser Pensante (vulgo Denis Portela)

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Desviado



Descobri que não posso me dizer comunista
Pois nunca tive coragem de repartir o que tenho com outros
Desviei-me
Menos ainda anarquista
Pois, pávido,  sustento as estruturas governamentais com meus impostos
Desviei-me novamente
Ainda menos cristão
Pois, um dia depois de dizer-me apto à ser um pequeno Cristo
Contrariei sua conduta pacificadora alistando-me em um exército
Desviei-me de tudo, e já estou condenado à fogueira
Não à esta que dizem ser eterna, mas àquela que já dura milênios
Mas uma coisa posso dizer que com certeza nunca
Nunca serei, nem pretendo mudar
Ser omisso, apesar das justificativas acima
E ser omisso implica em estar na rota
Desviei-me, não de hoje
Àqueles que juntamente comigo se desviaram da conveniência de espírito
Registro minha admiração à vossa beleza
Que com coragem, assumem sua incapacidade
Mas também assumem  a enorme vontade que têm de vence-lá
À estes sou grato
Por terem se desviado
E desviado a mim

terça-feira, 17 de julho de 2012

Pensamentos


Deve ser a fadiga
Deve ser o sintoma da morte
Esta que nos cerca desde que chegamos ao mundo
Desde que o primeiro feixe de luz dividiu o mundo das sombras e do sono entre nós
Entre nós e a inocência
Passaram-se os dias e eu continuo a questionar-me
Onde irei?
De onde vim senão da cegueira
O embuste imputado à nós
Foi o de vislumbrarmos a razão onde habita a mentira
Passados singulares dias
Horas, minutos, segundos e os milésimos destes
Desde que eu, receoso de minhas escolhas
Julguei-me inapto de prosseguir com estas crenças
Vãs  crenças até então
Obscuros os pensamentos que me vieram
Hoje, tão claro o acerto
Que de tanta claridade
Me vejo cego frente a tristeza de um passado
Em que a espúria felicidade hoje sim, se faz real
Sob a clareza da verdade
Sob a égide do entendimento
Sob a paz da busca infindável
Agora sim, valendo a pena
Se cansa a minh'alma

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Pensamentos de um Ser Pensante como você.



              Pensamentos de longa data, que só resolveram apresentar-se à mim novamente nesta data querida:


"Qual o limite entre a fé e o fundamentalismo? O que define uma vida ética? O que define uma vida religiosa? A fé (ou o que chamam de vida religiosa, ainda que meu conceito de religião consista em que a mesma e a fé podem ser coisas distintas) consiste em uma superação da vida ética?





Em dias de grande caos ideológico, deparo-me angustiado com inúmeras reflexões que podem contribuir ou não para tantos outros que, assim como eu, deparam-se com inúmeras incertezas frente às suas crenças, bases e concepções do que vem a ser certo ou errado, moral ou imoral e ético ou anti-ético.





Pergunto-me se ser fundamentalista consiste unicamente em discordar do modo como pensa a maior parte, ou até mesmo ser o único a pensar de tal forma. Pelo que tenho observado de muitos, parece-me que um bom tanto de pessoas pensam desta maneira.





Ora, se grande parte da sociedade pensa ser altamente justificável e racional um relacionamento casual por exemplo, torna-se fundamentalista aquele que, de maneira "irracional" ou pelo menos de maneira não pautada nas justificativas mais comuns a todos, pensa de maneira diferente. Tão logo, vale-se do mesmo raciocínio para o contrario disto.





O que indago aqui é se nossas bases frente ao que vem a ser o mais ético e o fundamentalista estão firmadas em solos resistentes e coesos. Não busco por essas linhas esclarecer esta questão. Muito pelo contrário. Busco pelas mesmas incomodá-los a uma reflexão que resulte em um possível debate entre os que argumentam frente a tal problema. Convido-vos à angústia do questionamento do que é agir eticamente e se é possível agir de maneira acima do ético.


Pelo "quase nada" que li de Kierkergaard, parece-me ser justificável que a fé pode ser a superação da ética. Peço aos "amadores" e aos especialistas no assunto que me ajudem a solucionar tais questões. Grato aos que desde já participam de algum modo deste vão pensamento, ainda que somente lendo. Ainda mais grato pela paciência dos que tentam compreender-me."


domingo, 24 de junho de 2012

Cristãos: Uma espécie em extinção (Parte 3)


Cá estou mais uma vez. Creio que não precisarei me desculpar mais pela falta de comprometimento para com o tempo de espera que apresento a vocês, juntamente com cada texto que apresento. Se vos apresento um texto hoje, já sabem que o próximo tardará por vir. Infelizmente, nem só de textos vive um blogueiro. Alguns afortunados até vivem.

Ironias e desculpas a parte, gostaria de dar continuidade a série “Cristãos: uma espécie em extinção”, cuja última vez que escrevi deixei por continuar com a temática da apresentação de João Crisóstomo e a continuidade da reflexão proposta por Tolstoi frente o papel da igreja na conscientização da sociedade ao longo dos tempos no que diz respeito a resistência ao mal. Pois bem, demos continuidade então.

Tolstoi não cita João Crisostomo em vão. O hoje considerado santo e grande homem nos primórdios da igreja institucionalizada, talvez seja o principal responsável pela inserção da arte da oratória nas reuniões entre os cristãos. A temática é abordada de maneira complexa por Frank Viola na obra tão pouco trabalhada nas faculdades e cursos de teologia pelos bonzos do cristianismo contemporâneo de maneira complexa e de extrema relevância para aqueles que almejam compreender os primórdios da religião cristã. Vale ressaltar que Viola trata o costume do sermão como “A vaca sagrada do protestantismo”, observando desde o início o papel relevante que tomou a arte da oratória após o advento da Reforma no século XVI.

João Crisóstomo tornou-se conhecido em seus dias por ter uma admirável habilidade para discursar em público. Não é à toa que pessoas se exprimiam para ouvi-lo e contemplar seus sermões em nome da fé. Crisóstomo teve grande influência dos considerados “primeiros advogados do mundo”: os sofistas. Esta vertente filosófica nasceu na Grécia e começou a crescer muito na Europa aproximadamente 500 a.C. , pregando o alcance da virtude por meio das argumentações presentes em seus longos discursos. Crisóstomo, segundo afirma Viola, foi aluno de um dos maiores sofistas de seu tempo, o famoso Libanius.

Com forte influencia da escola sofista e também da literatura pagã (ou romana), Crisóstomo passou a ter muito mais espaço para dar seus sermões ao público dito cristão, sendo muitas vezes interrompido pelos aplausos da multidão, que admirava a habilidade que o mesmo tinha para proferir poesias, visando impressionar a plateia. O poder da retórica grega era tão influente sobre as pessoas, que certa vez, mesmo com Crisóstomo condenando os aplausos na “casa de Deus”, o povo aplaudiu o seu sermão ao término deste.

Bom, o que tudo isso tem a ver com os dias de hoje? Na verdade, para responder à esta pergunta é preciso conhecer um pouco mais sobre os costumes da igreja institucional contemporânea e a supervalorização que os mesmos dão à arte do falar em público. Em muitos cursos teológicos 9senão em todos) a disciplina conhecida como homilética tende a enfatizar a importância da arte da oratória, deixando de lado a importância devida à participação do todo nas reuniões entre os membros da ekklesia[1].

Gostaria de continuar esta reflexão por meio destes fatos históricos mais adiante.

Paz, sabedoria e inconformismo de espírito e mente a todos!



[1]  Assembléia; palavra que vem do grego e que deu origem ao termo Igreja.

Uma espécie em extinção: os cristãos. (Parte 2)


Dando continuidade ao texto anterior, onde introduzi o tema a ser tratado nas próximas postagens destacando algumas palavras de Liev Tolstoi, o nada famoso (infelizmente) escritor russo, proponho a vocês leitores que, juntos, continuemos a observar as palavras de Tolstoi e sua leitura frente ao que vieram a oficializar como “cristianismo”, mas que em nada se assemelha às ações efetuadas pelo simples e humilde Cristo que dizem as atuais e históricas vertentes cristãs basearem a sua pregação.

Um dos pontos evidenciados por Tolstoi em sua obra O Reino de Deus está em vós  que gostaria de trabalhar, esta presente no capítulo 2 da mesma, que leva o título de Opiniões dos fiéis e dos livres pensadores sobre a não resistência ao mal por meio da violência. Este ponto trata de um problema não muito novo, muito menos incomum, tanto entre os seguidores de Cristo como entre os livres pensadores do cotidiano e das relações humanas. O problema tratado aqui por Tolstoi é o da justificativa do uso da violência por conta de uma possível “extinção dos bons”. E, para tratar dessa questão, Tolstoi cita um homem por demais influente no que diz respeito à formação do cristianismo como conhecemos hoje. O apelidado “boca dourada” (e veremos mais adiante o porque deste título): João Crisóstomo.

Vejamos a seguinte fala de Tolstoi, onde ele aponta tal justificativa como a segunda entre as cinco mais usadas pelos cristãos ao longo da história para fazerem uso da violência:



“O segundo meio — um pouco menos grosseiro — consiste em reconhecer que o Cristo ensinava, é verdade, a dar a face e o manto, e que esta é, realmente, uma elevada moral..., mas... uma vez que, sobre a terra, existe um grande número de malfeitores, é preciso mantê-los pela força, para que não se veja perecerem os bons e até mesmo o mundo inteiro. Encontrei pela primeira vez este argumento em São João Crisóstomo e demonstro sua falsidade em meu livro A minha religião.

Este argumento não tem valor porque, se nos permitimos declarar, não importa quem, um malfeitor fora-da-lei, destruímos toda a doutrina cristã segundo a qual somos todos iguais e irmãos, na qualidade de filhos de um só Pai Celeste. E mais, ainda que Deus houvesse permitido a violência contra os malfeitores, sendo impossível determinar de modo absolutamente certo a distinção entre o malfeitor e aquele que não é, aconteceria que os homens e a sociedade se considerariam mutuamente malfeitores: coisa que hoje existe. Enfim, supondo que fosse possível distinguir com segurança um malfeitor daquele que não é, não se poderia encarcerá-lo, torturá-lo e condená-lo à morte numa sociedade cristã, porque não haveria nela ninguém para cometer tais atos, sendo qualquer violência proibida ao cristão.”

Tolstoi, Liev. O reino de Deus está em vós. Best Bolso. Rio de Janeiro, 2011, p.41.



Ora, devo admitir que a elucidação de Tolstoi frente ao que o cristianismo contemporâneo prega é perfeita. Tal justificativa não é, e nem pode ser reconhecida como pautada nos preceitos e na prática de Cristo. Observamos ao longo dos relatos do Novo Testamento diversas passagens, além do chamado “Sermão do Monte” (que até o século XVI não tinha este título, mas isso é assunto pra outra oportunidade), em que Jesus condena seus próprios seguidores por pensarem ser a violência uma arma a ser utilizada em prol da justiça entre os homens. Vejamos o seguinte relato do livro de João:





“Tendo Jesus dito isto, saiu com os seus discípulos para além do ribeiro de Cedrom, onde havia um horto, no qual ele entrou e seus discípulos.



E Judas, que o traía, também conhecia aquele lugar, porque Jesus muitas vezes se ajuntava ali com os seus discípulos.

Tendo, pois, Judas recebido a corte e oficiais dos principais sacerdotes e fariseus, veio para ali com lanternas, e archotes e armas.

Sabendo, pois, Jesus todas as coisas que sobre ele haviam de vir, adiantou-se, e disse-lhes: A quem buscais?

Responderam-lhe: A Jesus Nazareno. Disse-lhes Jesus: Sou eu. E Judas, que o traía, estava com eles.

Quando, pois, lhes disse: Sou eu, recuaram, e caíram por terra.

Tornou-lhes, pois, a perguntar: A quem buscais? E eles disseram: A Jesus Nazareno.

Jesus respondeu: Já vos disse que sou eu; se, pois, me buscais a mim, deixai ir estes;

Para que se cumprisse a palavra que tinha dito: Dos que me deste nenhum deles perdi.

Então Simão Pedro, que tinha espada, desembainhou-a, e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha direita. E o nome do servo era Malco.

Mas Jesus disse a Pedro: Põe a tua espada na bainha; não beberei eu o cálice que o Pai me deu?

Então a coorte, e o tribuno, e os servos dos judeus prenderam a Jesus e o maniataram.”



Texto extraído da Bíblia Sagrada versão João Ferreira de  Almeida corrigida e revisada fiel. Livro de João, cap 18, vers 1 – 12.



Preciso dizer que a apologia ao uso da violência feita por homens como “São” João Crisóstomo contradizem as palavras e a prática de Cristo? Gostaria de propor a vocês leitores uma reflexão frente às diversas justificativas para o uso da violência, dentre elas a citada anteriormente por Tolstoi. Na próxima postagem tentarei abordar para uma melhor compreensão de todos os que acompanham esta narrativa, a figura de João Crisóstomo. Quem foi tal personagem e como o mesmo influenciou o atual cristianismo, seja ele católico apostólico romano ou protestante de qualquer vertente?

Desde já, ressalto minha gratidão a todos pela atenção que tem tido para com este espaço nos últimos dias. Um agradecimento em especial aos amigos Marcílio P. Mendes (mais conhecido como Júnior), Railton Guedes e Vento Suzano Farias Lima, que têm trabalhado para proporcionar à pessoas como eu, leituras que ajudem a compreendermos melhor as palavras de Cristo.