Ser Pensante

Ser Pensante
"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

domingo, 10 de março de 2013

Desmascarando a teoria camita defendida por Marco Feliciano

         

    Estou disponibilizando para os que acompanham o meu blog um trabalho acadêmico feito por mim e meu colega Hector Maia em 2010 sobre a questão da teoria camita e suas reais intenções, tendo vista a polêmica em torno da mesma nos últimos dias. Desde já grato pela atenção de todos. Compartilhem se puderem.



Introdução

Mais do que qualquer outra região, qualquer outro continente, a África foi e continua sendo, indiscutivelmente, a maior vítima de uma percepção preconceituosa no que diz respeito à visão eurocêntrica, que acabou se tornando em determinados momentos da história uma visão universal. Isso é o que vem a ser destrinchado ao longo do texto que tem por titulo “a Percepção da África”; dos autores Carlos Serrano e Mauricio Walldman, onde os mesmos têm por finalidade levar o leitor a uma compreensão coerente, que ultrapasse os limites deixados a nós ocidentais pelo imaginário europeu no que diz respeito a este vasto continente: a África.
Para que possamos entender melhor o que foi e o que é hoje a África no que diz respeito a sua cultura, sociedade e economia, primeiramente se faz necessário que “caiam as escamas” de nossos olhos. Precisamos buscar compreender melhor este continente tendo consciência de que muito, senão tudo do que aprendemos até então sobre o mesmo, foi formado por uma visão preconceituosa e extremamente eurocêntrica. E, tendo consciência de que existe e já existiu de uma maneira muito mais intensa esta visão, é preciso problematizar a fim de entender quais fatores levaram a Europa a se colocar em uma posição privilegiada com relação ao cenário econômico, social e político  do planeta em diferentes épocas e contextos.




1.   A Europa convencida de sua superioridade

Bem sabemos que a Europa sempre se colocou como uma civilização acima das outras. Isso foi o resultado de uma série de conjunturas, de todo um processo histórico, no qual este cenário de superioridade européia foi se configurando ao ponto de expandir este conceito de superioridade ao resto do mundo, fazendo com que em determinados momentos todos o tivessem como certo e indiscutível. Porém, isto será abordado mais adiante. A principio seria de relativo interesse entender quais motivos levaram a Europa a usufruir deste “complexo de superioridade” sobre a África e a razão pela qual o continente africano pode ser considerado a maior vitima deste eurocentrismo. Vejamos do que fez uso a Europa para colocar a África abaixo dos outros continentes. Comecemos por uma citação do texto base “A percepção da África”:

O imaginário europeu devotou para as terras africanas e para seus habitantes um amplo leque de injunções desqualificantes, muitas vezes respaldadas pelos expoentes da chamada “grandes intelectualidade” européia.
SERRANO, Carlos. WALLDMAN, Mauricio. Memória d´África – Temática Africana em sala de aula. Editora Cortez. 2007. p.21

A África, tendo em vista o que foi citado anteriormente, torna-se vitima de uma percepção em que é vista como uma terra que está literalmente condenada ao “papel de espaço periférico da humanidade” (Serrano e Walldman p. 21). Esta civilização leva consigo a idéia de selvageria, de um povo bárbaro, de uma sociedade não-civilizada. Idéia esta formada por mitos religiosos, questões geográficas, (dentre estas o seu clima tropical), questões raciais, étnicas e principalmente questões econômicas. Os europeus estavam muito convencidos de sua superioridade em muitos aspectos, e isto, mais uma vez faço enfático, devemos ter como primazia em nossos estudos. Vejamos o que diz Alberto da Costa e Silva sobre isto: “Convencidos de sua superioridade, procuravam atribuir ao outro a imagem de que si próprios haviam construído e se punham a crer que o nativo os tinha por sobre-humanos.”(SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: A África e a escravidão de 1500 a 1700. Editora Nova fronteira. 2002. p. 360)
Como vimos, a África era tida com um continente limitado, povoado por selvagens incapazes de se organizarem com a finalidade de se obter uma estrutura social, que fosse condizente com a idéia de sociedade que tinham os Europeus. Partindo-se desta questão, como se posicionaram os grandes pensadores ao longo da história , principalmente no período iluminista, com relação a este conceito estabelecido dos europeus com relação aos africanos? O que de fato pensavam com relação ao “olhar o outro” com um ar de superioridade como faziam os europeus? Será que se posicionavam a estas concepções, ou se omitiam? Ou ainda mais, será que também não usufruíram destes conceitos eurocêntricos sobre a África?



2.   A África, o Iluminismo e a filosofia

Um fator importante a se destacar é que nas falas de Serrano e Walldman é enfatizado de que mesmo no período iluminista, onde os filósofos atuavam como a força pensante e questionadora aos moldes do sistema dominante europeu, a África acabou por ser esquecida em suas críticas e questionamentos. Mas, será que de fato a África foi esquecida nas falas destes grandes pensadores? Abordaremos esta questão partindo de algumas reflexões com base nas concepções e falas de alguns filósofos, tanto do período iluminista como de períodos anteriores e posteriores ao mesmo. Começaremos a fazer está reflexão com base em alguns temas tratados por grandes pensadores ao longo da história como, por exemplo, a escravidão e outras situações relacionadas à questões de igualdade e preconceito.
Alguns filósofos como Jonh Locke, por exemplo, defenderam assiduamente a escravidão. Muito antes do período Iluminista, Aristóteles havia feito um tratado político defendendo a escravidão. Montesquieu (este também do período iluminista), também apoiava a escravidão, tendo-a por civil e tolerável. Voltairé, um dos pensadores citados por Serrano e Walldman e que talvez tenha sido o maior pensador do que chamamos de período iluminista, escreveu alguns textos citando questões como igualdade, preconceito, propriedade, senhorio e  muitas outras como  veremos adiante.
Já que Voltairé é tido por muitos como o maior pensador e critico do Iluminismo, partiremos da análise de uma de suas mais importantes obras, o “Dicionário Filosófico” (1764), onde suas críticas procuram demonstrar as contradições embutidas nas concepções que ataca, onde na maioria das vezes as faz de forma leve e sutil, ridicularizando a certeza humana em dados momentos. Daqui em diante, observaremos sua obra com o fim de obtermos algumas conclusões e formarmos uma opinião consistente no que diz respeito ao papel da filosofia nas questões escravistas da qual, no período do Iluminismo, a África era a maior vítima.
No texto que colocaremos em evidência, por conseguinte, fica claro que Voltairé era ciente que questões relacionadas à escravidão perduravam por longos anos e que o continente europeu sempre foi o grande manipulador desta “proeza”. Vejamos isto em sua definição sobre escravos, no mesmo dicionário filosófico: “Tudo o que se pode recolher do emaranhado da história da Idade Média é que no tempo dos romanos nosso universo conhecido se dividia entre homens livres e escravos.”(VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.241).
Vejamos outro trecho da obra de Voltairé onde relata a questão da escravidão como algo de longa duração e até natural na abordagem que o mesmo faz na história da humanidade.

                    “A escravidão é tão antiga quanto a guerra, e a guerra é tão                    antiga quanto a natureza humana. Nenhum legislador da antiguidade tentou ab-rogar a escravidão: ao contrário, os povos mais entusiastas da liberdade, como os atenienses, os espartanos, os romanos, os cartegineses, foram os que tiveram as leis mais duras contra os servos e os escravos. “
VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.241

Voltairé também afirmava ser a escravidão algo presente em diversas culturas, tanto no Oriente quanto no Ocidente, entre judeus, muçulmanos (entre estes, africanos muçulmanos, acreditem), e até mesmo entre os cristãos europeus. Vejamos mais uma de suas falas no Dicionário Filosófico:

“Entre os africanos muçulmanos e os europeus cristãos sempre subsistiu o costume de pilhar e de escravizar tudo o que é encontrado no mar. Os religiosos de Malta, sucessores de Rodes, juram pilhar e acorrentar todos os muçulmanos que encontrarem. As embarcações do papa vão prender argelinos ou são capturados nas costas setrintoriais da África. Aqueles que se diziam brancos vão comprar negros a bom preço para revende-los na América.”
VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.241

Como pudemos observar ao longo das falas de Voltairé, é evidente que ele era conhecedor das práticas escravistas que perduravam por muito tempo, e que eram praticadas não só por europeus, mais por diversos povos colonizadores. Ainda em Voltairé e em seu dicionário filosófico vejamos algumas de suas falas no tópico intitulado “Igualdade”:

“O que um cão deve a outro cão e um cavalo deve a outro cavalo? Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante; mas o homem, visto que recebeu o raio da divindade chamado razão, qual é o fruto disso? O de ser escravo em quase toda terra.”
VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.333


Voltairé desenvolve em seu conceito de igualdade, uma crítica ferrenha às práticas escravistas ao longo da história da humanidade. Crítica está que tem por finalidade questionar todos estes períodos em que prevaleceu a escravidão, deixando claro que este é um mal que não provém de ordem natural, mais da eminente ação do homem e de sua organização social. Vejamos mais uma de suas falas onde isto fica evidente:

“Nesse estado tão natural de que gozam os quadrúpedes, as aves e os répteis, o homem seria tão feliz quanto eles, a dominação seria então uma quimera[1], um absurdo em que ninguém pensaria, pois, para procurar servos quando não se tem necessidade de serviço algum?“
VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.333

Ainda falando com respeito a questões igualitárias, temos um tópico denominado “senhor” no mesmo dicionário filosófico que tem por finalidade trabalhar mais uma vez esta questão do individuo que se sobrepõe à outro indivíduo. Vejamos um trecho do mesmo: “Como é que um homem pôde se tornar senhor de outro homem e por que espécie de magia incompreensível pôde se tornar senhor de muitos outros homens?” (VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.458)

Os autores de nosso texto “A percepção da África”, alegam terem os filósofos “se esquecido” do continente africano. De fato, Voltairé em suas palavras não faz referencia a África em si, mais como observamos, expressava seu pensamento com relação a valores de igualdade entre os homens, o que enquadrava o território africano e seus povos de maneira indireta. O fato é que mesmo Voltairé, que fez questão de falar tanto sobre suas concepções de igualdade, esqueceu-se das mesmas em suas práticas no cotidiano como citam alguns documentos. É o que diz um trecho da coleção Grandes Pensadores da história universal, da editora Abril. Vejamos: “Voltairé por um lado defendia a liberdade, e pelo outro era sócio no tráfico de escravos negros.[2]” Se de fato o que foi publicado pela editora Abril for de verossímil coerência, e entendermos que a prática de um ideal igualitário fala mais alto do que o discurso concernente ao mesmo, de fato temos que concordar com Walldman e Serrano e dizer que estão certos quando dizem ter os pensadores iluministas se esquecido do continente africano.  Mais do que isto, saber que Voltairé nunca falou da África de maneira direta nos remete a alguns questionamentos como por exemplo: por quais motivos teria Voltairé enfatizado tantos períodos escravistas, em diferentes lugares do mundo através de diferentes culturas, mais não fez questão de mencionar o que presenciava em seus próprios dias no que diz respeito a prática escravista, visto que, como dissemos anteriormente, ás práticas escravistas se davam de maneira extremamente intrínseca com os povos da África subsaariana por parte dos europeus? Será que Voltairé se sentia constrangido em falar sobre a escravidão para com os povos africanos, visto que suas práticas não fariam jus ás suas falas? Será que não citou estas questões por entender que, ao falar de diversos momentos históricos em que se deu a escravidão, entendia que indiretamente estava insinuando a situação que presenciava em seus dias?  Estas são algumas questões a se pensar no que diz respeito a filosofia no período iluminista no que diz respeito à prática escravista intensa para com os africanos.
Nietzsche em sua “Genealogia da Moral” irá desenvolver a idéia já apresentada em Humano, Demasiado Humano e Para além do Bem e do Mal, de que existe uma dupla origem para nossos juízos de valor, resultante de duas formas distintas de avaliar a vida: a moral dos senhores e a moral dos escravos. Entretanto, por outro lado, o protesto de Nietzsche, que vê na  humildade é simplesmente um aspecto da "moral dos escravos", obviamente é dirigido ao típico conceito medieval de humildade[3].
Outro filósofo marcante do iluminismo, mais precisamente do iluminismo francês, Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 28 de Junho de 1712 — Ermenonville, 2 de Julho de 1778), considerou qualquer simples existência de escravidão como prova evidente da decadência da sociedade civilizada em sua obra “Discurso sobre as origens e os fundamentos de igualdade entre os homens – 1754.”
O filósofo e matemático francês Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet (Ribemont ,Aisne, 17 de Setembro de 1743 - Bourg-la-Reine, 28 de Março de 1794), normalmente referido como Nicolas de Condorcet escreveu um famoso ensaio[4], mais apesar de todo o esforço dele e de muitos outros pensadores, a abolição da escravidão só veio a ser aprovada em 4 de fevereiro de 1794, na época da convenção.[5]




                                                                         Ensaio de Condorcet

Deixemos que cada indivíduo ao ler o que foi exposto até então, tire suas próprias conclusões e reflita se acaso a África foi de fato esquecida pelos filósofos iluministas. E, se de fato não fizeram questão de falar da África de forma direta, porque o fizeram? Porém uma coisa é evidente: que o combate veemente á prática da escravidão era algo que ainda estava muito distante da realidade do mundo ao qual estavam inseridos estes pensadores.

3.   Etnocentrismo, Eurocentrismo – entendendo melhor o preconceito

Como dissemos anteriormente, buscaremos encontrar evidências que nos ajudem a entender a real razão para que a Europa criasse uma visão tão repleta de aversão aos povos africanos. Para entendermos isto melhor é preciso que façamos uma breve reflexão sobre três conceitos: o etnocentrismo, o eurocentrismo e o afrocentrismo.

·         Etnocentrismo

O etnocêntrismo consiste ao que cada grupo étnico tende a elaborar, valorizar no que diz respeito a sua própria cultura. Podemos dizer que está é uma característica universal inerente tanto aos povos nativos do terceiro mundo quanto aos europeus. Segundo muitos pesquisadores, se faz comum a associação de eurocêntrismo como mais um etnocêntrismo. Porém, deduzimos que o eurocêntrismo se diferencia do etnocêntrismo por algumas questões.

·         Eurocentrismo

Sabemos que o eurocentrismo não corresponde a uma única etnia, visto que na Europa existem diferentes grupos étnicos. O eurocentrismo na verdade é uma visão articulada a partir de suas referências clássicas: as civilizações grega e romana, onde algumas características se destacam, como por exemplo os processos violentos de uma ideologia e a falsificação histórica. Ou seja, a universalização do modo europeu é o que diferencia o eurocêntrismo do etnocêntrismo.
Dentro dessa visão greco-romana, que acabou por se tornar a visão do que hoje chamamos de civilização Ocidental, as culturas dos povos dominados são retratadas como arcaicas, primitivas e erráticas, que pouco progrediram e pouco influenciaram no desenvolvimento da humanidade. [6]


4.   O preconceito atrelado a religião

A visão eurocêntrica sobre a África, não está atrelada somente a questões étnicas, mais está fortemente ligada a questões religiosas.

 “As fábulas criadas sobre os povos africanos já é muito antiga, mais toma ainda mais força quando a ideologia judaico-cristã passa a fazer parte deste cenário.” O pensamento europeu da época alimentava-se na Bíblia, na doutrina da Igreja e na antiguidade Greco-romana.”
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: A África e a escravidão de 1500 a 1700. Editora Nova fronteira. 2002. p. 855

Segundo Serrano e Walldman, uma das grandes razôes para que o conceito de superioridade dos europeus sobre os africanos se fizesse ainda mais forte do que sobre qualquer outra cultura foi o conceito formado em cima da “teoria camita”.

“... a infame teoria camita, interpretação que estigmatizava os negros enquanto descendentes do personagem bíblico Cam como indignos, posteriormente conotada pelo pressuposto que os africanos estariam fadados a escravidão.”
 SERRANO, Carlos. WALDMAN, Mauricio. Memória d´África – Temática Africana em sala de aula. Editora Cortez. 2007. p.25


Próximo ao ano mil, as referências sobre o que era chamado até então de Aethiopia, estavam completamente atreladas pelo imaginário da cristandade. Sobre as interpretações teológicas cristãs, co-relacionadas com as geográficas, articulava-se a difusão da teoria camita sobre a origem das populações negro-africanas. Mais do que isto, a cor negra foi associada a uma representação da maldade bíblica, o que contribuiu ainda mais para uma visão de desprestigio geográfico e cultural a África.
Essa teoria camita surge de um conjunto de textos escritos por consagrados “doutores” do século XIV, que explicavam que os descendentes de Cam – Cus, Mesraim, Phut e Canaã – teriam povoado uma região que se estendia do sul da Síria até o norte africano, onde Cus teria gerado os Etíopes, Mesraim os Egípcios, Phutos os trogloditas[7] e Canaã os Àfri e os fenícios. A interpretação de que os descendentes de Cam seriam os povos Áfri e de que eles estariam sobre maldição foi compartilhada por muçulmanos e judeus.[8]
As imagens com relação aos africanos estavam tão atreladas ao imaginário europeu que tiveram influência até mesmo na cartografia universal. A teoria camita e a fusão da cartografia de Claudio Ptolomeu com a “cosmologia”[9] cristã contribuem para que a intensificação do relegar a África à uma  posição de inferioridade.

Claudio Ptolomeu

É importante salientarmos que as palavras de Claudio Ptolomeu e suas teorias eram ouvidas sempre com grande respeito por todos os estudiosos de sua época. Neste período, Ptolomeu desenvolve uma série de idéias e contribui para o avanço da ciência com seus trabalhos em matemática, astrologia, astronomia, geografia e cartografia. Ptolomeu forma toda a cartografia medieval, onde os mapas produzidos por ele seguem um padrão, onde a terra sempre está representada por um círculo que contém  as terras conhecidas: Europa, Ásia e África, distribuídas no interior deste mesmo círculo em forma de um T. O termo mais usual para esses mapas e suas representações era mapas T O”, que nada mais significava do que uma abreviação de Orbis Terrarum, ou seja, o círculo da Terra.

                          Mapa-mundi T O, século XII

Um dos mapas que mais representa a união entre a cartografia de Ptolomeu com a teologia medieval é o mapa conhecido como “Psalter” (1250). Nele, o que entendiam como paraíso terrestre estava representado ao norte, no topo da imagem, e Jerusalém, o local da ascensão do Filho de Deus aos céus no centro.

                              Mapa psalter

A Igreja se apropria da cartografia de Ptlomeu para fortalecer sua teoria camita, ou a cartografia de Ptolomeu é que se apropria da teoria camita da igreja? É bem provável que seja a Igreja tenha aproveitado da cartografia para sustentar sua idéia de que a população africana de fato seria oriunda de um povo amaldiçoado, e por conta disso estaria em maldição.
A Europa, cuja população descendia de Jafet (ou Jafé), primogênito de Noé, ficava à esquerda (do obeservador) de Jerusalém. Vale salientar que o primogênito na cultura (tradição) judaica, carregava consigo todo um significado místico, uma idéia de filho separado para o sacerdócio. Logo, podemos supor que a teologia medieval se apropria da idéia de descender do filho primogênito, do filho abençoado. A Ásia, local dos filhos de Sem (o segundo filho de Noé), encontra-se à direita. Ao sul surge a representação do continente africano, remontado por esta forte idéia de maldição que pesa sobre as costas de Cam, como dito anteriormente na explicação sobre a teoria camita.
O imaginário europeu se encarrega de criar todo o tipo de mitos em referência aos africanos. Acreditava-se fielmente que a parte habitável da Etiópia, por exemplo, era moradia de seres monstruosos, que os europeus denominaram como “os homens das faces queimadas”.  A cor negra estava diretamente associada ao mal, ao inferno, visto que o diabo nos tratados teológicos, nos contos preeminentes deste período e até mesmo nas visões das feiticeiras perseguidas pela inquisição, estavam geralmente ligados a cor negra.
Outro preconceito estabelecido sobre os povos africanos estava relacionado ao clima tropical do continente. Esses preconceitos percorreram o imaginário europeu desde a concepção da Igreja e, que as altas temperaturas no continente faziam alusão ao inferno. Este tipo de preconceito relacionado ao clima seguiu até o século XIX, onde esta mesma questão preconceituosa relacionada ao clima se fez presente está  mitos científicos oriundos das concepções do Darwinismo Social e do Determinismo Racial, onde os africanos foram colocados como homens preguiçosos, primitivos, incapazes de aprender, onde o clima contribuía para esta “lentidão” na evolução desses seres. Por conta disso, desta falta de progresso, dependeriam sempre do homem branco, mais precisamente do europeu. Para que possamos entender melhor isto, faz-se necessário entender o que é de fato o Darwinismo social e o Determinismo radical.
O Darwinismo social consiste na tentativa de se aplicar o darwinismo nas sociedades humanas. Este termo se popularizou por intermédio do historiador norte-americano Richard Hofstadter. Este pensamento tem como base a idéia de que existiram características biológicas e sociais que determinariam que uma pessoa era superior à outra. Muitos destes padrões de superioridade estavam vinculados à idéia de que estes indivíduos superiores dispunham de algumas características como, por exemplo, maior poder aquisitivo, maior habilidade com ciências humanas e exatas, aptidão para a arte e etc. Já os deterministas radicais acreditam que todas as ações são determinadas pela hereditariedade e pelo ambiente. Por meio do esclarecimento do que vêm a ser o Darwinismo social e o Determinismo radical, fica evidente o quanto a África envolta em um preconceito regido não só pelo imaginário europeu, mais posteriormente á questões cientificas. Fugindo um pouco deste âmbito África-europa a qual se dirige este trabalho, acrescento ainda que na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, o ditador Hitler apoiava-se no Darwinismo radical afim de rotular os judeus, os negros e outros, como uma raça “degradada”, enquanto que os alemães eram tidos como modelo de desenvolvimento físico e intelectual. A própria natureza, segundo Hitler, incumbia-se de eliminar os “fracos”.

5.    A África e o conceito de incivilizado

Entre todos os problemas observados ao longo deste texto, como os agravantes espirituais, religiosos e elementos fabulosos oriundos da Idade Média, estendendo-se até o período mercantilista e daí por diante, surge então na fase industrialista uma outra questão para se apontar a África como um continente inferior a todos os outros: a carência de civilização. Juntamente com a especulação de “carência de civilização” vem a questão da desorganização social, onde estabelece-se a idéia de que o continente africano era habitado por povos sem nenhuma estrutura social, desprovidos de organização. O Egito por exemplo, que todos evidentemente sabem que desenvolveu uma ampla estrutura, segundo os europeus só ô fez por ter tido um grande contato com os povos europeus, ou seja, teria sido “arianizado”. Para que possamos melhor entender o porquê a África foi considerada como um continente desprovido de organização social, de intelectualidade e etc, primeiramente é preciso entender o que significava o termo incivilizado para a ideologia dominante, ou seja, a européia.
Bem sabemos que tudo o que era estrangeiro ou desconhecido para o europeu era considerado como algo digno de monstruosidade, selvageria. Este pensamento ganhou ainda mais força na Idade Média segundo o historiador Lee Goff. “Para a Idade Média, o estrangeiro e o desconhecido são monstros, a ponto de que se misturam traços bestiais aos traços humanos.” (LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval -  vol. II; coordenador da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 132).
O texto “A percepção da África” evidencia, como já dito anteriormente, que o continente africano passou a ser visto como o “canto periférico do mundo”. Mais o que e fato era o centro para o europeu? O que o mesmo entendia por periferia? E por que a África estava tão mais próxima deste conceito de periferia do que do conceito de centro?
O Europeu já permeia a idéia organizadora há muito tempo, desde os gregos e os romanos. Vejamos:

“Ordem é o que podemos perceber no espetáculo dos planetas onde cada elemento ocupa seu lugar e sua ordem sem um ser empecilho para o outro. Esta sentença formulada no séc. XII no círculo da escola de Abelardo, sugerindo a harmonia comum entre o cosmos e a congregação dos homens, situa-se na longínqua herança da concepção antiga, grega e romana, de “ordererum”.
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval -  vol. II; coordenador da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 305


O conceito de centro/periferia nos ajuda a entendermos bem o que era o conceito de civilizado/incivilizado para o imaginário europeu. Este conceito centro/periferia perdurou ao longo dos séculos, mas ganhou força e se estruturou de fato na Idade Média, onde a partir de então, passou a ser tido como parte essencial da ordem universal, da estrutura e da forma como deve funcionar isto no espaço das economias, das sociedades e das civilizações. Le Goff menciona que podemos ver em Wallerstein e Braudel que  este sistema existiu, funcionou e se estabilizou de forma concreta a partir do século XV, e ganhou ainda mais força nos séculos XVI e XVII com o inicio do capitalismo e da economia-mundo. Vejamos como Le Goff usa de uma fala de Braudel, onde o mesmo cita estes conceitos de centro/periferia como algo essencial para entendermos o que era o pensamento social e econômico na Idade Média.

“... o centro, o coração, reúne tudo o que existe de mais avançado e mais diversificado. O círculo seguinte só tem uma parte destas vantagens, ainda que delas participe: é a zona dos “segundos brilhantes”. A imensa periferia, com seus povoamentos pouco densos, é, ao contrário, o arcaísmo, o atraso, a exploração fácil pelo outro. (F.Braudel)”
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval - vol. I; coordenador da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 203


A Europa se via como o centro do mundo. Olhava para si mesma e via-e como o oposto do atraso, do arcaico, de tudo o que era desprovido de progresso e organização. Logo, tudo o que não estava neste centro já se encontrava em condição de atraso, de subdesenvolvimento, de incapacidade organizacional. Para os homens da Idade Média, o centro era o que definiria o que viria a ser a periferia e a descentralização, ou seja, o europeu era quem estava mais apto à saber quem e o que era a periferia, quem e o que era civilizado.
A definição de centro para os europeus na Idade Média também estava intrinsecamente atrelada ao cristianismo. Os grandes pais e doutores da igreja estruturaram todo um pensamento no qual Cristo seria o centro do universo, logo tudo o que estivesse fora desse centro também estaria fadado ao estado periférico. Estes conceitos de centro/periferia estão tão atrelados à fé cristã que tudo no planeta girava em torno de dois centros (aqui surge também o conceito de policentrismo) que seriam Roma e Jerusalém.

“A dificuldade em se pensar o centro foi acentuada por certas características essenciais da Cristandade Medieval, que possui dois grandes centros fundamentais, históricos, religiosos e ideológicos: Roma e Jerusálem.”
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval - vol. I; coordenador da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 203

Estar afastado dos centros significava para o europeu estar afastado de Deus, de Cristo. E, se para a fé cristã todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus[10], logo, estar afastado do mesmo é estar afastado do crescimento, da prosperidade, da evolução, do progresso. A África se encaixava no “estar longe do centro“ em todos os aspectos, inclusive no que dizia respeito ao plano espiritual universal, metafísico. Mas, se até então o continente africano não era o único continente a se cristianizar, porque então sofreu uma perseguição mais intensificada se comparada a outros povos, como por exemplo, os orientais? Com certeza, encontraremos boa parte desta resposta na questão da teoria camita que citamos anteriormente, mas existiram outros fatores que contribuíram para que povos como os do Oriente fossem vistos com outros olhos quando equiparados com os povos africanos.
Le Goff e Schmitt argumentam sobre a questão dos povos do oriente serem mais “respeitados” do que os povos da África, principalmente a África subsaariana. Eles dizem ser este “respeito” resultado da própria abertura destes povos onde o Oriente passa a ser considerado pelo imaginário europeu como uma periferia diferente, para melhor dizer, como  uma “fronteira” entre o centro e a periferia.
“Uma periferia revelou-se de particular importância, a periferia oriental. Não somente porque ela é um objeto de desenvolvimentos e de confrontos especialmente fortes entre germânicos e bálticos, germanos e eslavos, germanos e húngaros, mas porque foi a mais aberta, a que acabou por fim por colidir com a periferia de dois outros conjuntos de sociedades e de duas civilizações que a bloquearam.”
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval - vol. I; coordenador da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 203


Em alguns textos que têm por finalidade o estudo dos povos orientais e suas estruturas, observamos muitas semelhanças com toda a organização européia, principalmente no que diz respeito à economia. Vejamos a seguinte citação de Paul Gareli no que diz respeito ás estruturas “feudais” dos povos asiáticos.
“Todos os Estados que surgiram devido às desordens que sacudiram o Oriente Próximo no decurso dos séculos XVII e XVI – a observação não diz respeito unicamente a Mesopotâmia – possuem, como traço comum, instituições que quase sempre se classificam como “feudais”. Tanto na Ásia menor hitita como nos reinos sírios, em Mitani como na Assíria ou na Babilônia, os soberanos são vistos a distribuir terras, supostamente “feudos” a príncipes ou particulares, considerados seus “vassalos”.”
GARELLI, Paul. O Oriente próximo asiático: das origens ás invasões dos povos do mar. Pioneira: Editora da universidade de São Paulo. 1982. p.318

O que podemos concluir de tudo isto é que o conceito de civilizado/incivilizado para o europeu se deu de forma diferente e em momentos diferentes, porém a base deste conceito sempre foi à mesma, onde se via sempre o outro como algo selvagem e desprovido de qualquer capacidade organizacional, havendo algumas exceções, como no caso dos Orientais, por exemplo, como observamos no que foi citado por Garelli anteriormente.
Toda a percepção da África girou exatamente em torno da idéia que os europeus tinham de que, se o continente africano não era capaz de ter uma estrutura sócio-econômica ao menos semelhante à européia, logo este continente estava desprovido de qualquer qualidade organizacional. Assim concluímos que todo o preconceito com o povo africano girou em torno da originalidade que os mesmos tinham. Preconceito este resultante de diversas questões como a religião e o eurocentrismo, mas principalmente, pelo medo que os europeus demonstraram ter em assumir que não eram o único modelo de estrutura social a ser seguido. 



[1] Quimera: Fantasia, sonho.
[2] Grandes Pensadores da História Universal. Editora Abril. p,749. Vol. 3

[3] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Editora Martins Fontes. 2007. p.520

[4] Condorcet - Réflexions sur l’esclavage des nègres. Neufchatel : Société Typographique, 1781.

[5] vide: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/2007/03/28/000.htm
[6] ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo. Brasiliense. 1994
[7] Troglodita: Que vive em cavernas ou sob a terra. Individuo primitivo.

[8] (STENOU, Katérina. Image de L´Autre: La difference Du mythé au préhúgé. Paris. Edition UNESCO. 1998. p.72)

[9] Cosmologia: ciência que trata das leis gerais que regem o universo.
[10]   Esta fala faz alusão a um trecho da Bíblia escrito pelo apóstolo Paulo em sua carta aos cristãos que estavam em Roma. Este trecho encontra-se no livro intitulado Romanos; capítulo 8 versículo 28.

5 comentários:

  1. Muito bom, gostei do seu esforço pra fazer esta pesquisa excelente.

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  2. Muito bom meu amigo!
    Gostei muito do trabalho!

    Abraço!

    Douglas

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  3. Excelente artigo, caiu que nem uma luva para o momento assombroso no cenário da Comissão dos Direitos Humanos...

    Valeu!
    ;)

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  4. Olá, estou compartilhando este artigo e guardando pra ler com bastante cuidado :)
    Parabéns pela iniciativa

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