Ser Pensante

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"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O chaveiro da Casa sem portas - Parte 2




O senhor Martinho especializou-se na arte de copiar chaves. Sua loja, muito bem localizada em um bairro bem movimentado da capital paulistana, sempre foi bem frequentada. Martinho nunca foi lá muito atento às conversas que circulavam no estabelecimento. Isso não queria dizer que ele fosse exatamente desatento para com a clientela. Na verdade, a atenção de Martinho estava toda  em fazer o serviço bem feito, e de “sim, sim” e “não, não”, que poucas vezes eram substituídos pelo seu pensativo e longo ‘hum”, o bom chaveiro envolvia-se com os curiosos casos levantados pelos clientes. Ora, de fato sua clientela não era da mais alta camada da intelectualidade social, nem tampouco da mais tenra classe dos desprovidos de esclarecimento. Sua clientela era composta de gente simples como ele, mas que estava um pouco mais acostumada a questionar a vida, ainda que raramente.

    Não é por acaso que o senhor Martinho não se ocupava muito em aventurar-se nas nuances, um tanto quanto filosóficas, de seus bem quistos fregueses. Martinho, homem bem acostumado com os costumes, não se queixava muito da vida e estava sempre a afirmar:

- É preciso dar graças! Em tudo, dar graças.

    Martinho não era dos mais religiosos, levando-se em conta  aquilo que os seus entendiam como ‘mais religioso” era reconhecido pelo fato de um individuo estar presente e ativo em algum tipo de comunidade religiosa, com alguma organização (ainda que mínima) eclesiástica. O homem nunca foi lá de muito compromisso para com a pequena comunidade cristã que frequentava, a dois passos de sua casa, e de mais uns dois de sua loja. O nome que têm veio exatamente da criação que teve. E muito provavelmente, assim como seu filho, talvez não tivesse chegado a conhecer um pouco mais sobre suas próprias crenças se não fosse pelo nome que seu pai graciosamente havia lhe cedido. Esta história ele estava cansado de ouvir desde criança, tal qual Vincent estava cansado de ouvir também.

- Foi num belo culto de Natal, na pequena igrejinha de minha simples cidadezinha que nasceu seu nome, filho meu. Ah! Se não tivesse anunciado que naquele dia viria o homem douto da capital, talvez eu não tivesse ido àquele culto, nem seria quem sou, nem você existiria e, se viesse a existir, teria um nome mais belo, mas com toda a certeza, nem um pouco mais ilustre.

    Sim. Esta era a história do pai de Martinho. Seu Arnaldo, mais conhecido na cidade como “o homem das chaves”, também não era lá homem muito interessado em política, religião e todas essas coisas que ele dizia serem bem admiradas pelos “homens doutos da cidade grande”. Mas, vez ou outra, o simples homem em meio a ociosidade do tempo vago que se tinha em sua loja, questionava boa parte do que ouvia e até mesmo do que ele mesmo dizia aos que lhe ouviam. Muitas certezas e poucas dúvidas, mas destas poucas nasceram a visita àquele culto. O homem estava ansioso. Há mais de dois meses já havia observado o anúncio na porta da igreja e o assunto era bem comentado entre os poucos clientes que tinha.

- Ora, não acontece nada de novo nessa cidade, Seu Arnaldo! Borá lá, nem que for de abelhudice, ver o tal de protestante!

     Entre os fiéis da pequena cidade o tal do termo muito ouriçava. E diziam que o homem, além de protestante era formado na tal teologia. Outros diziam até que era historiador. Outros que ele seria um grande psicólogo também, ainda que não soubessem exatamente o que seria este "nome chique" e outros mais ainda, que o tal homem era milagreiro dos bons e que não cobrava nada além de um abraço do felizardo que fosse curado de qualquer mal por uma simples palavra dele.

- Eita coisa doida! Tenho que ver esse diacho de protestante que além de protestar na igreja, ainda é doutor da tal teologia.

    Chegado o dia do tão esperado culto de Natal, eis que, depois de algumas belas canções e uma peça de teatro interpretada pelos mais jovens da congregação, o tal do homem douto é convocado a se apresentar no púlpito do pequeno templo.

- Mais de duas horas de falatório, Argemiro. Deus do céu, eu não vi nada de protestante no tal homem. E de tudo que ele disse só me lembro do nome do homem que peitou os padres. Martinho. Nome simples e curto, que de tão curto foi a única coisa que ficou na minha mente. Mas de toda a forma, eu quero saber mais dessa tal teologia. E se essa tal teologia der algum tostão, tenho ainda mais interesse.

    Obviamente que passados alguns meses, Seu Arnaldo buscou conhecer um pouco mais a tal teologia. Nada de tão chique como insinuavam viu na coisa toda. Logo se desinteressou por conta dos nomes difíceis que viu dentre os poucos textos que leu da biblioteca escondida nas pequenas salas da igreja. Percebeu mais cedo ainda que a coisa toda não fosse lhe dar mais dinheiro do que as chaves que copiava. Principalmente por que de milagreiro ele nada tinha. Tampouco o tal do “homem douto e protestante”, para sua frustração. O maior milagre que o homem douto poderia fazer era convencer a todos que era douto. E o maior milagre que o Seu Arnaldo poderia fazer, até aquele momento, eram umas cópias de chaves muito bem feitas.

    De toda forma, o “homem das chaves” continuou com seus milagres e resolveu deixar de bisbilhotar a tal teologia. Só se lembrou da mesma quando o filho nasceu. E na falta de nome mais sugestivo, querendo que seu filho fosse santo mais nem tanto, o presenteou com “Martinho” de nome, e “ dos Santos” de sobrenome, sendo “Dos Santos” da família, pra honrar a tradição, e Martinho da tal teologia, pra ver se o tal menino fosse afim  de achar alguma coisa pra peitar e protestar, que de preferência não fosse o padre da cidade, que por sinal, não tinha nada a ver com isso.

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