Ser Pensante

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"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

domingo, 28 de junho de 2015

FARISAÍSMO: A RELIGIÃO DOS MILÊNIOS - PARTE II

PARTE II



    Ao tratarmos das características do movimento farisaico, a principal fonte de informação sobre o mesmo, sem dúvida alguma, é a coleção de textos, livros, cartas e epístolas, que tem como intento o registro e disseminação, tanto da história do povo judeu como de uma das principais figuras de extrema relevância para a compreensão da história das sociedades: falamos aqui da Bíblia e de Jesus Cristo. Sendo assim, é importante observarmos alguns aspectos literários que darão melhor visibilidade ao que há de mais relevante sobre o farisaísmo em tal acervo, tomando-o, antes de tudo, como textos de caráter narrativo e documental, o que nos propiciará ampla visualidade ao que há de mais relevante sobre o farisaísmo.

    O livro que dá início ao que conhecemos como Novo Testamento, o Evangelho Segundo São Mateus, dá especial atenção ao movimento farisaico nos dias de Cristo. A presença dos fariseus nas narrativas desta obra é constante, como em nenhum outro livro. Há uma importante justificativa para tal. Segundo o historiador Jonathan Hill, especialista em História do cristianismo, o Evangelho Segundo São Mateus foi elaborado em uma época de separação definitiva entre os que se identificavam como cristão (os chamados judeu-cristãos) à religião judaica. Em relação entre os dois grupos estava em sua pior fase[1]. O Evangelho de São Mateus tem um intuito claro de legitimar a figura messiânica do Cristo enquanto cumpridor das profecias da tradição judaica. O Evangelho de São Mateus tem sido desde os primórdios das organizações dos textos canônicos e uso por parte das igrejas Católica e Protestante, impresso em primeiro lugar nas obras que formam o Novo Testamento. Isto porque, segundo Santo Agostinho[2], este Evangelho teria sido escrito entre 50 e 75, mas na atualidade, não são poucos os pesquisadores que apontam o Evangelho Segundo São Marcos como o mais antigo dentre os do cânone neotestamentário. Muitos pesquisadores a partir do século XVIII passaram a questionar a autoria da obra ao discípulo de Cristo, conhecido como Mateus, o cobrador de impostos, ou como apontado nos textos bíblicos, o publicano. Os que assim creem, reivindicam a autoria desta obra a um possível judeu-cristão anônimo. Os estudiosos mais conservadores sobre esta questão atribuem a Mateus, o discípulo, tal autoria.

    Os dois caminhos possíveis sobre o autor da obra em evidencia nos levam à uma imprescindível reflexão sobre o farisaísmo, tendo em vista que, se de fato a obra que mais aponta críticas sobre a seita judaica foi escrita por um judeu cristão, em processo histórico de rompimento com a tradição religiosa judaica, é mais do que natural que o autor tenha se firmado sobre o fim da necessidade e do cumprimento da Lei mosaica[3], sob a necessidade de se entender a proposta do Cristo como cumpridora desta lei. Parece compreensível então o uso do anonimato por parte do autor, tendo em vista o teor violento e extremista da facção judaica tratada aqui, sob a ótica do legalismo ante a tradição. Se de fato a obra foi escrita por Mateus que era  um publicano, está aqui uma grande ironia sobre o movimento farisaico e sobre qualquer radicalismo diante da possibilidade de arrependimento por parte de alguém que a principio viria a oprimir os seus, fazendo-se contraditório frente os ensinamentos do Cristo. Compreensão esta que fica evidente na narrativa do Evangelho de São Lucas sobre a parábola O Fariseu e o Publicano, em uma sequência de instruções e questionamentos levantados por Cristo aos seus discípulos narrados também de maneira sequencial neste Evangelho. Talvez a obra e o texto, tido como um dos principais e a meu ver o principal quando o assunto é farisaísmo, tenham para além do caráter denuncista sobre a seita judaica, o intento de advogar sobre os que eram acusados pelos adeptos destas seitas e até mesmo por parte dos legítimos seguidores de Cristo, como no caso de Mateus por ser um publicano. Mas isto será abordado com mais propriedade posteriormente.

    O Evangelho Segundo São Marcos, que é apontado pela maioria dos estudiosos como o primeiro dos Evangelhos a ser produzido, denota um misto de características positivas e negativas segundo os fariseus.[4] Este Evangelho apresenta uma certa subtileza sobre as críticas estabelecidas sobre os movimentos de raiz judaizante que se opunham a Cristo, se comparado ás narrativas dos outros dois evangelhos sinópticos[5]. O fato de ser o evangelho mais curto, contendo apenas dezesseis capítulos, somados com a atenção especial à relevância que esta obra contempla frente os milagres do cristo e seus diversos pedidos de silêncio aos que eram beneficiados por tais prodígios, são traços fortes que marcam esta obra. Outro traço reconhecido por alguns estudiosos sobre os textos de São Marcos está no fato de que muitos o reconhecem como uma obra destinada a apresentar Jesus aos chamados gentios[6] de língua grega e que estavam inseridos sobre os domínios  geográficos, políticos e culturais do Império Romano. Logo, faz-se compreensível que o autor da obra (não há unanimidade sobre a identidade do autor entre os estudiosos) não tenha se preocupado muito em retratar os possíveis problemas de Jesus com o judaísmo de sua época, mas sim a maneira como Jesus se relacionava com os que estavam necessitados em conhecer a sua postura e seu possível messianismo. O diferencial do Evangelho de São Marcos, neste sentido, é que o autor não apresenta uma teologia impositiva em afirmar o messianismo de Cristo, postulando então o conceito de “Segredo Messiânico” sobre muitas das suas narrativas. Esta última caracteriza merece especial atenção e será abordada posteriormente quando tratarmos do farisaísmo e da apropriação do termo para os nossos dias. É necessário observar também que a obra de São Marcos é tida por muitos como uma obra de caráter pacificador quanto ao messianismo de Cristo relacionado à problemática frente este conceito entre judeus e os judeus rompantes que seguiam o Cristo.

    O Evangelho Segundo São Lucas apresenta grande erudição e evidencia enorme talento literário. O uso do grego, língua predominante na época tal qual o inglês e sua universalidade imperial em nossos dias, evidencia uma preocupação do autor quanto ao alcance aos não judeus (os chamados gentios que agora se tornavam cristãos), ­ ainda maior que a do autor da obra do Evangelho de São Marcos.

    O livro de São Lucas denota um período chamado de meio tempo em suas narrativas. Isto se dá por conta do entendimento de que o livro dos Atos dos Apóstolos teria sido escrito pelo mesmo autor e os dois na verdade implicariam em uma única obra, dividida em dois volumes. Nesse sentido, o capítulo primeiro deste evangelho traria o primeiro período, que vai desde a história que antecede o surgimento de João Batista e se finda no batismo de multidões por meio do próprio João e do seu apontamento para a vinda do Messias, dando assim início ao segundo período, este período do meio que acabo de evidenciar, que vai até o final da obra deste evangelho, visando apresentar a vida e mensagem do Cristo. O terceiro período se dá no livro dos Atos dos Apóstolos, onde Lucas se propõe a narrar a história da primeira Igreja, conhecida como Igreja Primitiva e o surgimento e influência do apóstolo Paulo sobre a mesma. O segundo período conceituado como meio tempo é de fundamental importância para entendermos a forma como Cristo é apresentado pelo autor e, consequentemente, a forma como este Cristo se relaciona com o mundo a sua volta e, claro, com o movimento farisaico.

     Este segundo período aqui observado, parece revelar uma preocupação que os cristãos da época da produção da obra tinham com relação ao iminente retorno do Cristo. Sendo assim, Lucas irá centrar-se sobre a natureza do reino e da vida comunitária da Igreja como consequência da compreensão desta natureza aplicada à vida prática. Um bom exemplo disto está no fato de que apenas o Evangelho de São Lucas contém as tão populares parábolas do Filho pródigo, do Mordomo Infiel e do Bom Samaritano. Neste sentido podemos afirmar que o autor da obra parece querer oferecer um caráter filosófico, um norte sob a vida e a mensagem do Cristo e do que deveria ser a mesma aplicada pela Primeira Igreja. A obra ainda denota especial cuidado para com a humanidade e o caráter cuidadoso de Deus para com os pobres, as crianças e as mulheres. Vale ressaltar também o importante papel que o autor deste Evangelho dá à participação das mulheres na atuação de Cristo. Em suma, o Evangelho de São Lucas é o que apresenta um Cristo preocupado em resumir a Lei no “amar a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo”, resplandecendo um Cristo longínquo com relação ao poder e aos que afirmam deter o poder e o aproximando de todo o que é tido pelo constructo social como fraco ou que venha a se reconhecer como tal. Aqui temos um relato mais do que especial para o desenvolvimento de nossa narrativa: a parábola sobre o fariseu e o publicano. Confesso ter especial empatia pela obra, pelo cuidado historiográfico e pelo caráter filosófico que marca os traços do autor, ainda que seja da opinião de muitos que tal homem seja desconhecido, o que faz da obra ainda mais especial, já que sou um legítimo amante do heroísmo incógnito.

    No que tange ás citações de Lucas aos fariseus, o capítulo sete deste Evangelho é um verdadeiro tratado moral e ético de Cristo frente aos amantes da perfeição legalista de seus dias. O capítulo onze evidencia um caráter crítico de Cristo aos religiosos de seus dias por não se mostrarem abertos à simplicidade de sua mensagem, dando sequência a narrativa em que Jesus aceita jantar com um fariseu em sua casa. O capítulo dezesseis deste Evangelho também pretende ser de alto teor crítico-moral aos legalistas que pareciam ter uma paixão acima da própria Lei que tanto reivindicavam, sendo esta paixão o dinheiro. E, por fim, temos o capítulo dezoito do Evangelho de São Lucas com a já conhecida e citada aqui anteriormente, parábola que narra a história do encontro de um fariseu com um cobrador de impostos. Todos estes capítulos serão tratados de especial forma nos textos subsequentes desta obra.




[1] HILL, Jonathan. História do Cristianismo, p.38
[2] Conhecido também como Agostinho de Hipona, foi um dos mais importantes teólogos e filósofos do início e da história do cristianismo.
[3] Código de leis da religião judaica que  organizavam o comportamento sobre a tradição de seu povo e adeptos de tal fé.
[4] HILL, Jonathan. História do Cristianismo, p.38
[5] Os livros de Mateus, Marcos e Lucas compõem estes Evangelhos.
[6] Termo que faz referencia a um individuo que não é judeu.

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