Ser Pensante

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"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

sábado, 25 de maio de 2013

Deus nos livre de um Brasil evangélico




Começo este texto com uns 15 anos de atraso. Eu
explico. Nos tempos em que outdoors eram
permitidos em São Paulo, alguém pagou uma
fortuna para espalhar vários deles, em avenidas,
com a mensagem: “São Paulo é do Senhor Jesus.
Povo de Deus, declare isso”. Rumino o recado desde
então. Represei qualquer reação, mas hoje, por
algum motivo, abriu-se uma fresta em uma
comporta de minha alma. Preciso escrever sobre o
meu pavor de ver o Brasil tornar-se evangélico. A
mensagem subliminar da grande placa, para quem
conhece a cultura do movimento, era de que os
evangélicos sonham com o dia quando a cidade, o
estado, o país se converterem em massa e a terra
dos tupiniquins virar num país legitimamente
evangélico. Quando afirmo que o sonho é que
impere o movimento evangélico, não me refiro ao
cristianismo, mas a esse subgrupo do cristianismo e
do protestantismo conhecido como Movimento
Evangélico. E a esse movimento não interessa que
haja um veloz crescimento entre católicos ou que
ortodoxos se alastrem. Para “ser do Senhor Jesus”, o
Brasil tem que virar "crente", com a cara dos
evangélicos. (acabo de bater três vezes na madeira).
Avanços numéricos de evangélicos em algumas
áreas já dão uma boa ideia de como seria
desastroso se acontecesse essa tal levedação radical
do Brasil.
Imagino uma Genebra brasileira e tremo. Sei de
grupos que anseiam por um puritanismo moreno.
Mas, como os novos puritanos tratariam Ney
Matogrosso, Caetano Veloso, Maria Gadu? Não
gosto de pensar no destino de poesias sensuais
como “Carinhoso” do Pixinguinha ou “Tatuagem” do
Chico. Será que prevaleceriam as paupérrimas
poesias do cancioneiro gospel? As rádios tocariam
sem parar “Vou buscar o que é meu”, “Rompendo
em Fé”? Uma história minimamente parecida com a
dos puritanos provocaria, estou certo, um cerco aos
boêmios. Novos Torquemadas seriam implacáveis e
perderíamos todo o acervo do Vinicius de Moraes.
Quem, entre puritanos, carimbaria a poesia de um
ateu como Carlos Drummond de Andrade? Como
ficaria a Universidade em um Brasil dominado por
evangélicos? Os chanceleres denominacionais
cresceriam, como verdadeiros fiscais, para que se
desqualificasse o alucinado Charles Darwin.
Facilmente se restabeleceria o criacionismo como
disciplina obrigatória em faculdades de medicina,
biologia, veterinária. Nietzsche jazeria na categoria
dos hereges loucos e Derridá nunca teria uma
tradução para o português. Mozart, Gauguin,
Michelangelo, Picasso? No máximo, pesquisados
como desajustados para ganharem o rótulo de
loucos, pederastas, hereges. Um Brasil evangélico
não teria folclore. Acabaria o Bumba-meu-boi, o
Frevo, o Vatapá. As churrascarias não seriam
barulhentas. O futebol morreria. Todos seriam
proibidos de ir ao estádio ou de ligar a televisão no
domingo. E o racha, a famosa pelada, de várzea
aconteceria quando? Um Brasil evangélico
significaria que o fisiologismo político prevaleceu;
basta uma espiada no histórico de Suas Excelências
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nas Câmaras, Assembleias e Gabinetes para saber
que isso aconteceria. Um Brasil evangélico
significaria o triunfo do “american way of life”, já
que muito do que se entende por espiritualidade e
moralidade não passa de cópia malfeita da cultura
do Norte. Um Brasil evangélico acirraria o
preconceito contra a Igreja Católica e viria a criar
uma elite religiosa, os ungidos, mais perversa que a
dos aiatolás iranianos. Cada vez que um evangélico
critica a Rede Globo eu me flagro a perguntar: Como
seria uma emissora liderada por eles? Adianto a
resposta: insípida, brega, chata, horrorosa, irritante.
Prefiro, sem pestanejar, textos do Gabriel Garcia
Márquez, do Mia Couto, do Victor Hugo, do
Fernando Moraes, do João Ubaldo Ribeiro, do Jorge
Amado a qualquer livro da série “Deixados para
Trás” ou do Max Lucado. Toda a teocracia se tornará
totalitária, toda a tentativa de homogeneizar a
cultura, obscurantista e todo o esforço de higienizar
os costumes, moralista. O projeto cristão visa
preparar para a vida. Cristo não pretendeu anular os
costumes dos povos não-judeus. Daí ele dizer que a
fé de um centurião adorador de ídolos era singular;
e entre seus criteriosos pares ninguém tinha uma
espiritualidade digna de elogio como aquele soldado
que cuidou do escravo. Levar a boa notícia não
significa exportar uma cultura, criar um dialeto,
forçar uma ética. Evangelizar é anunciar que todos
podem continuar a costurar, compor, escrever,
brincar, encenar, praticar a justiça e criar meios de
solidariedade; Deus não é rival da liberdade
humana, mas seu maior incentivador.
Portanto, Deus nos livre de um Brasil evangélico.

Ricardo Gondim (Pastor "evangélico", teólogo, filósofo e, ainda humano)

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