Entender a máquina que transforma os homens
em máquinas. Árdua tarefa. Parar em um ponto de ônibus sobre uma forte chuva,
observar as pessoas a sua volta. O jeito, a forma como olham, as palavras que
pronunciam e os assuntos que valorizam em seus diálogos, cada cena do
espetáculo remonta a um paradigma. Algumas obras, algumas mentes se predispõem
a fazer mais do que apenas reproduzir a máquina que são dentro da Grande
Máquina que os formou. Querem compreender se de fato são máquinas, se rebelar
contra a Máquina Mãe que os pariu , renegando assim a sua casta, o seu cálice.
Dentre alguns destes homens, me deparei Leo Huberman. Sua obra “História da riqueza
do homem” tem exatamente esta pitada de rebeldia frente a Grande Máquina, e
impulsiona no que degusta suas palavras uma cumplicidade para com o sentimento
que elas elucidam.
O sentimento que em mim já habita há muito
tempo, essa profissão de fé sob a contracultura, esse abraço insano na espera
do porvir sob o caótico conceito de temporalidade, se potencializou ao ler as
argumentações de Huberman sobre o tempo e as diferentes predisposições humanas
ao longo do mesmo. Confesso (e nem precisaria confessar o que já se faz
evidente em meus gritos) que as observações feitas por Huberman e a luz que ele
trás aos assuntos “Igreja Evangélica” (exemplificado no trato de “Reforma
Protestante”) e “Transição do Feudalismo para o Capitalismo” me despertam maior
ímpeto para a rebeldia, pois guiam o focinho do cão até o osso, dando sentido
ao forte odor que sentia, conduzindo seu olfato até o que oferece prazer ao seu
paladar da inconformidade. Eis aí posta uma porta sobre o social, e com as
palavras deste historiador, muitas chaves.
Lutero, a figura amada e preterida por
muitos oradores e homens de influência na chamada era pós-moderna, tido como
homem radical, é aqui evidenciado como responsável por muito do que é nossa
catastrófica atmosfera xenófoba, elitista, machista, racista e classista. Eu
cansei de respirar deste ar, e quero trabalhar com outros mágicos para que a
respiração de muitos seja mais prazerosa do que a presente. O porquê digo o que digo? O porquê ensaio uma
ofensiva contra Lutero? O que este homem fez para ser responsabilizado pelo
massivo processo de zumbificação contemporâneo? Ofereço a sequência com as
devidas respostas.
Segundo Huberman, gritavam os camponeses
revoltosos com a miséria que todos os dias os castigava imposta pela igreja,
pela passada Peste Negra e por todas as mudanças econômicas dos séculos XIV, XV
e XVI, afim de se não se libertarem, ao menos aliviarem a sua dor:
“Cristo
fez livres todos os homens.”[1]
Em algum lugar, ressoava o grito do Cristo,
passado mais que presente, se sobrepondo a céus e Terra como havia prometido:
“E conhecereis a verdade, e a verdade
vos libertará.”[2]
Não contente, continuava Cristo a empurrar os camponeses do medievo a sua luta. Mostrava-se a favor dos oprimidos, contra a opressão e intolerante para com a mentira sobre suas palavras. De maneira simples, singela e sutil, se posicionou:
“Bem-aventurados os que têm fome e sede
de justiça, porque eles serão fartos.”[3]
Mas Lutero, o radical, o admirado, o
revolucionário, o seguidor do bom Cristo, o Reformador da casa que estava
prestes a desabar, sentenciou:
“Deus prefere que existam os governos,
por piores que sejam, do que permitir à ralé que se amotine, por mais razão que
tenha. Aquele que mata um rebelde faz o que é certo. Portanto, todos os que
puderem devem punir, estrangular ou apunhalar, secreta ou publicamente. Os que
perecerem nessa luta devem realmente ser considerados felizes, pois nenhuma
morte mais nobre poderia ocorrer a ninguém. Estarei sempre ao lado dos que
condenam a rebelião e contra os que a provocam.”[4]
Acho que as respostas a todas as indagações
anteriores sobre Lutero e seus filhos, sobre a fala do exemplar Pai da família
cristã tradicional, foram postas sobre a mesa. Desfrute. Mas, ainda assim,
gostaria de especificar ainda mais a razão pela qual vejo neste homem, nas suas
posturas e nas suas falas, o entendimento de grande parte do que é a sociedade
hoje, especificamente a brasileira, da qual faço parte, ainda que eu não me
identifique com nenhum tipo de patriotismo ou nacionalismo.
O historiador que uso aqui como base para as
proposições que levanto indica o período vivido por Lutero, já conhecido por
todos, e o período anterior ao mesmo e a sua Reforma, tão conhecido quanto, mas
pouco evidenciado. A corrupção da Igreja e seus efeitos sobre a sociedade são
objetos de muitos estudos sobre o medievo e também de todo o tipo de fala
anti-cristã (e longe de mim excluir a razão de tais falas, ainda que goste
muito do termo cristão), e muito antes de Lutero, outros já estavam a
denunciá-las. Seriam outros radicais ou ainda, de fato, teriam existido homens
de fato radicais quanto a sua crítica a Igreja? Observe o trecho que segue:
“Os primeiros reformadores religiosos, ao
contrário de Lutero, Calvino e Knox, cometeram o erro de tentar reformar mais do que a religião.
Wycliffe fora, na Inglaterra, o líder
espiritual da Revolta Camponesa, e
Hus, na Boêmia, não só protestara contra Roma, como também inspirara um
movimento camponês de caráter comunista,
ameaçando o poder e os privilégios da nobreza.” [5]
Antes que me acusem de generalizações. Antes
que me chamem de bolivariano da fé, de deturpador da mensagem do cristo e de
aproveitador marxista, peço que examinem o mundo em que vivem. Peço que
observem as programações ditas cristãs e nascidas da Reforma Protestante em
seus televisores, que leiam os comentários de rodapé de muitos desses chamados “pastores”
sobre os textos bíblicos (principalmente os aqui citados), que se ponham a
observar os assuntos dos santos ao voltarem de seus tabernáculos nos pontos de
ônibus, na fila de um banco, na escola em que você estuda ou leciona (acredito
que todos façamos os dois inclusive) e responda, com sinceridade, senão estão
presentes nas falas destes indivíduos os discursos de Lutero, de alguma forma.
Não contente, observe o mundo ao seu redor.
Leia-o. Devore-o como se fosse um livro sobre um prato e pense em quem seriam
os camponeses perseguidos pelos Luteros e Reformadores de nossos dias. Seriam
os gays? Seriam os comunistas? Seriam os moradores do centro de São Paulo em
frente à Copa do Mundo? Seriam os professores que saem às ruas a reivindicar
uma educação libertadora e condições para colocá-la em prática no cotidiano?
Vejo Luteros.
Vejo camponeses.
Vejo camponeses.
Vejo
revolucionários esmagados sobre o anonimato e a perseguição da estupificação
todo o tempo.
E você?
E você?
O que vê?
Vejo além da deturpação da vida de Cristo, vejo um Cristianismo que em sua essencia já negligencia suas práticas e sesu ensinamentos.
ResponderExcluirVejo um mundo rodeados de pastores que alinam suas ovelhas, e ovelhas que, como otimas reprodutoras, disseminam tanto discurso segregatista e de ódio.
Desde sua origem, O Cristianismo traça uma eterna luta por hegemonia e poder, um fomento a vida farta.
O Protestantismo, principalmente no caso brasileiro, assume papéis até mais violentos e ultra ortodoxos que o Clero Medieval.
Vejo muito do que você escreveu, porém, neste momento em especial, o que eu vejo é um texto apaixonante e apaixonado, capaz de imprimir em uma leitora o desejo de conhecer e pensar em tudo o que você falou (e mais um pouco).
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