PARTE
II
Ao tratarmos das características do
movimento farisaico, a principal fonte de informação sobre o mesmo, sem dúvida
alguma, é a coleção de textos, livros, cartas e epístolas, que tem como intento
o registro e disseminação, tanto da história do povo judeu como de uma das
principais figuras de extrema relevância para a compreensão da história das
sociedades: falamos aqui da Bíblia e de Jesus Cristo. Sendo assim, é importante
observarmos alguns aspectos literários que darão melhor visibilidade ao que há
de mais relevante sobre o farisaísmo em tal acervo, tomando-o, antes de tudo,
como textos de caráter narrativo e documental, o que nos propiciará ampla
visualidade ao que há de mais relevante sobre o farisaísmo.
O livro que dá início ao que conhecemos
como Novo Testamento, o Evangelho Segundo São Mateus, dá
especial atenção ao movimento farisaico nos dias de Cristo. A presença dos
fariseus nas narrativas desta obra é constante, como em nenhum outro livro. Há
uma importante justificativa para tal. Segundo o historiador Jonathan Hill,
especialista em História do cristianismo, o Evangelho Segundo São Mateus foi
elaborado em uma época de separação definitiva entre os que se identificavam
como cristão (os chamados judeu-cristãos) à religião judaica. Em relação entre
os dois grupos estava em sua pior fase[1]. O Evangelho de São Mateus
tem um intuito claro de legitimar a figura messiânica do Cristo enquanto
cumpridor das profecias da tradição judaica. O Evangelho de São Mateus tem sido
desde os primórdios das organizações dos textos canônicos e uso por parte das
igrejas Católica e Protestante, impresso em primeiro lugar nas obras que formam
o Novo Testamento. Isto porque, segundo Santo Agostinho[2], este Evangelho teria sido
escrito entre 50 e 75, mas na atualidade, não são poucos os pesquisadores que
apontam o Evangelho Segundo São Marcos como o mais antigo dentre os do cânone
neotestamentário. Muitos pesquisadores a partir do século XVIII passaram a
questionar a autoria da obra ao discípulo de Cristo, conhecido como Mateus, o
cobrador de impostos, ou como apontado nos textos bíblicos, o publicano. Os que
assim creem, reivindicam a autoria desta obra a um possível judeu-cristão
anônimo. Os estudiosos mais conservadores sobre esta questão atribuem a Mateus,
o discípulo, tal autoria.
Os dois caminhos possíveis sobre o autor da
obra em evidencia nos levam à uma imprescindível reflexão sobre o farisaísmo,
tendo em vista que, se de fato a obra que mais aponta críticas sobre a seita
judaica foi escrita por um judeu cristão, em processo histórico de rompimento
com a tradição religiosa judaica, é mais do que natural que o autor tenha se
firmado sobre o fim da necessidade e do cumprimento da Lei mosaica[3], sob a necessidade de se
entender a proposta do Cristo como cumpridora desta lei. Parece compreensível
então o uso do anonimato por parte do autor, tendo em vista o teor violento e
extremista da facção judaica tratada aqui, sob a ótica do legalismo ante a
tradição. Se de fato a obra foi escrita por Mateus que era um publicano, está aqui uma grande ironia
sobre o movimento farisaico e sobre qualquer radicalismo diante da
possibilidade de arrependimento por parte de alguém que a principio viria a
oprimir os seus, fazendo-se contraditório frente os ensinamentos do Cristo.
Compreensão esta que fica evidente na narrativa do Evangelho de São Lucas sobre
a parábola O Fariseu e o Publicano,
em uma sequência de instruções e questionamentos levantados por Cristo aos seus
discípulos narrados também de maneira sequencial neste Evangelho. Talvez a obra
e o texto, tido como um dos principais e a meu ver o principal quando o assunto
é farisaísmo, tenham para além do caráter denuncista sobre a seita judaica, o
intento de advogar sobre os que eram acusados pelos adeptos destas seitas e até
mesmo por parte dos legítimos seguidores de Cristo, como no caso de Mateus por
ser um publicano. Mas isto será abordado com mais propriedade posteriormente.
O Evangelho
Segundo São Marcos, que é apontado pela maioria dos estudiosos como o
primeiro dos Evangelhos a ser produzido, denota um misto de características
positivas e negativas segundo os fariseus.[4] Este Evangelho apresenta
uma certa subtileza sobre as críticas estabelecidas sobre os movimentos de raiz
judaizante que se opunham a Cristo, se comparado ás narrativas dos outros dois
evangelhos sinópticos[5]. O fato de ser o evangelho
mais curto, contendo apenas dezesseis capítulos, somados com a atenção especial
à relevância que esta obra contempla frente os milagres do cristo e seus
diversos pedidos de silêncio aos que eram beneficiados por tais prodígios, são
traços fortes que marcam esta obra. Outro traço reconhecido por alguns
estudiosos sobre os textos de São Marcos está no fato de que muitos o
reconhecem como uma obra destinada a apresentar Jesus aos chamados gentios[6] de língua grega e que
estavam inseridos sobre os domínios
geográficos, políticos e culturais do Império Romano. Logo, faz-se
compreensível que o autor da obra (não há unanimidade sobre a identidade do
autor entre os estudiosos) não tenha se preocupado muito em retratar os
possíveis problemas de Jesus com o judaísmo de sua época, mas sim a maneira
como Jesus se relacionava com os que estavam necessitados em conhecer a sua
postura e seu possível messianismo. O diferencial do Evangelho de São Marcos,
neste sentido, é que o autor não apresenta uma teologia impositiva em afirmar o
messianismo de Cristo, postulando então o conceito de “Segredo Messiânico”
sobre muitas das suas narrativas. Esta última caracteriza merece especial
atenção e será abordada posteriormente quando tratarmos do farisaísmo e da
apropriação do termo para os nossos dias. É necessário observar também que a
obra de São Marcos é tida por muitos como uma obra de caráter pacificador
quanto ao messianismo de Cristo relacionado à problemática frente este conceito
entre judeus e os judeus rompantes que seguiam o Cristo.
O Evangelho
Segundo São Lucas apresenta grande erudição e evidencia enorme talento
literário. O uso do grego, língua predominante na época tal qual o inglês e sua
universalidade imperial em nossos dias, evidencia uma preocupação do autor
quanto ao alcance aos não judeus (os chamados gentios que agora se tornavam
cristãos), ainda maior que a do autor da obra do Evangelho de São Marcos.
O livro de São Lucas denota um período
chamado de meio tempo em suas
narrativas. Isto se dá por conta do entendimento de que o livro dos Atos dos
Apóstolos teria sido escrito pelo mesmo autor e os dois na verdade implicariam
em uma única obra, dividida em dois volumes. Nesse sentido, o capítulo primeiro
deste evangelho traria o primeiro período, que vai desde a história que
antecede o surgimento de João Batista e se finda no batismo de multidões por
meio do próprio João e do seu apontamento para a vinda do Messias, dando assim
início ao segundo período, este período do meio que acabo de evidenciar, que
vai até o final da obra deste evangelho, visando apresentar a vida e mensagem
do Cristo. O terceiro período se dá no livro dos Atos dos Apóstolos, onde Lucas se propõe a narrar a história da
primeira Igreja, conhecida como Igreja
Primitiva e o surgimento e influência do apóstolo Paulo sobre a mesma. O
segundo período conceituado como meio
tempo é de fundamental importância para entendermos a forma como Cristo é
apresentado pelo autor e, consequentemente, a forma como este Cristo se
relaciona com o mundo a sua volta e, claro, com o movimento farisaico.
Este segundo período aqui observado, parece
revelar uma preocupação que os cristãos da época da produção da obra tinham com
relação ao iminente retorno do Cristo. Sendo assim, Lucas irá centrar-se sobre
a natureza do reino e da vida comunitária da Igreja como consequência da
compreensão desta natureza aplicada à vida prática. Um bom exemplo disto está
no fato de que apenas o Evangelho de São Lucas contém as tão populares
parábolas do Filho pródigo, do Mordomo Infiel e do Bom Samaritano. Neste
sentido podemos afirmar que o autor da obra parece querer oferecer um caráter
filosófico, um norte sob a vida e a mensagem do Cristo e do que deveria ser a
mesma aplicada pela Primeira Igreja. A obra ainda denota especial cuidado para
com a humanidade e o caráter cuidadoso de Deus para com os pobres, as crianças
e as mulheres. Vale ressaltar também o importante papel que o autor deste
Evangelho dá à participação das mulheres na atuação de Cristo. Em suma, o
Evangelho de São Lucas é o que apresenta um Cristo preocupado em resumir a Lei no
“amar a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo”, resplandecendo
um Cristo longínquo com relação ao poder e aos que afirmam deter o poder e o aproximando
de todo o que é tido pelo constructo social como fraco ou que venha a se reconhecer
como tal. Aqui temos um relato mais do que especial para o desenvolvimento de nossa
narrativa: a parábola sobre o fariseu e o publicano. Confesso ter especial empatia
pela obra, pelo cuidado historiográfico e pelo caráter filosófico que marca os traços
do autor, ainda que seja da opinião de muitos que tal homem seja desconhecido, o
que faz da obra ainda mais especial, já que sou um legítimo amante do heroísmo incógnito.
No que tange
ás citações de Lucas aos fariseus, o capítulo sete deste Evangelho é um verdadeiro
tratado moral e ético de Cristo frente aos amantes da perfeição legalista de seus
dias. O capítulo onze evidencia um caráter crítico de Cristo aos religiosos de seus
dias por não se mostrarem abertos à simplicidade de sua mensagem, dando sequência
a narrativa em que Jesus aceita jantar com um fariseu em sua casa. O capítulo dezesseis
deste Evangelho também pretende ser de alto teor crítico-moral aos legalistas que
pareciam ter uma paixão acima da própria Lei que tanto reivindicavam, sendo esta
paixão o dinheiro. E, por fim, temos o capítulo dezoito do Evangelho de São Lucas
com a já conhecida e citada aqui anteriormente, parábola que narra a história do
encontro de um fariseu com um cobrador de impostos. Todos estes capítulos serão
tratados de especial forma nos textos subsequentes desta obra.
[1]
HILL, Jonathan. História do Cristianismo, p.38
[2]
Conhecido também como Agostinho de Hipona, foi um dos mais importantes teólogos
e filósofos do início e da história do cristianismo.
[3]
Código de leis da religião judaica que
organizavam o comportamento sobre a tradição de seu povo e adeptos de
tal fé.
[4]
HILL, Jonathan. História do Cristianismo, p.38
[5] Os
livros de Mateus, Marcos e Lucas compõem estes Evangelhos.
[6]
Termo que faz referencia a um individuo que não é judeu.
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