Estou disponibilizando para os que acompanham o meu blog um trabalho acadêmico feito por mim e meu colega Hector Maia em 2010 sobre a questão da teoria camita e suas reais intenções, tendo vista a polêmica em torno da mesma nos últimos dias. Desde já grato pela atenção de todos. Compartilhem se puderem.
Introdução
Mais do que qualquer outra
região, qualquer outro continente, a África foi e continua sendo,
indiscutivelmente, a maior vítima de uma percepção preconceituosa no que diz
respeito à visão eurocêntrica, que acabou se tornando em determinados momentos
da história uma visão universal. Isso é o que vem a ser destrinchado ao longo
do texto que tem por titulo “a Percepção da África”; dos autores Carlos Serrano
e Mauricio Walldman, onde os mesmos têm por finalidade levar o leitor a uma
compreensão coerente, que ultrapasse os limites deixados a nós ocidentais pelo
imaginário europeu no que diz respeito a este vasto continente: a África.
Para que possamos entender
melhor o que foi e o que é hoje a África no que diz respeito a sua cultura,
sociedade e economia, primeiramente se faz necessário que “caiam as escamas” de
nossos olhos. Precisamos buscar compreender melhor este continente tendo
consciência de que muito, senão tudo do que aprendemos até então sobre o mesmo,
foi formado por uma visão preconceituosa e extremamente eurocêntrica. E, tendo
consciência de que existe e já existiu de uma maneira muito mais intensa esta
visão, é preciso problematizar a fim de entender quais fatores levaram a Europa
a se colocar em uma posição privilegiada com relação ao cenário econômico,
social e político do planeta em
diferentes épocas e contextos.
1.
A
Europa convencida de sua superioridade
Bem sabemos que a Europa
sempre se colocou como uma civilização acima das outras. Isso foi o resultado
de uma série de conjunturas, de todo um processo histórico, no qual este
cenário de superioridade européia foi se configurando ao ponto de expandir este
conceito de superioridade ao resto do mundo, fazendo com que em determinados
momentos todos o tivessem como certo e indiscutível. Porém, isto será abordado
mais adiante. A principio seria de relativo interesse entender quais motivos
levaram a Europa a usufruir deste “complexo de superioridade” sobre a África e
a razão pela qual o continente africano pode ser considerado a maior vitima
deste eurocentrismo. Vejamos do que fez uso a Europa para colocar a África
abaixo dos outros continentes. Comecemos por uma citação do texto base “A
percepção da África”:
O imaginário europeu devotou para as terras africanas e
para seus habitantes um amplo leque de injunções desqualificantes, muitas vezes
respaldadas pelos expoentes da chamada “grandes intelectualidade” européia.
SERRANO, Carlos. WALLDMAN, Mauricio. Memória d´África –
Temática Africana em sala de aula. Editora Cortez. 2007. p.21
A África, tendo em vista o
que foi citado anteriormente, torna-se vitima de uma percepção em que é vista
como uma terra que está literalmente condenada ao “papel de espaço periférico
da humanidade” (Serrano e Walldman p. 21). Esta civilização leva consigo a
idéia de selvageria, de um povo bárbaro, de uma sociedade não-civilizada. Idéia
esta formada por mitos religiosos, questões geográficas, (dentre estas o seu
clima tropical), questões raciais, étnicas e principalmente questões
econômicas. Os europeus estavam muito convencidos de sua superioridade em
muitos aspectos, e isto, mais uma vez faço enfático, devemos ter como primazia
em nossos estudos. Vejamos o que diz Alberto da Costa e Silva sobre isto: “Convencidos
de sua superioridade, procuravam atribuir ao outro a imagem de que si próprios
haviam construído e se punham a crer que o nativo os tinha por
sobre-humanos.”(SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: A África e a
escravidão de 1500 a 1700. Editora Nova fronteira. 2002. p. 360)
Como vimos, a África era
tida com um continente limitado, povoado por selvagens incapazes de se
organizarem com a finalidade de se obter uma estrutura social, que fosse
condizente com a idéia de sociedade que tinham os Europeus. Partindo-se desta
questão, como se posicionaram os grandes pensadores ao longo da história ,
principalmente no período iluminista, com relação a este conceito estabelecido
dos europeus com relação aos africanos? O que de fato pensavam com relação ao
“olhar o outro” com um ar de superioridade como faziam os europeus? Será que se
posicionavam a estas concepções, ou se omitiam? Ou ainda mais, será que também
não usufruíram destes conceitos eurocêntricos sobre a África?
2.
A
África, o Iluminismo e a filosofia
Um fator importante a se
destacar é que nas falas de Serrano e Walldman é enfatizado de que mesmo no
período iluminista, onde os filósofos atuavam como a força pensante e questionadora
aos moldes do sistema dominante europeu, a África acabou por ser esquecida em
suas críticas e questionamentos. Mas, será que de fato a África foi esquecida
nas falas destes grandes pensadores? Abordaremos esta questão partindo de
algumas reflexões com base nas concepções e falas de alguns filósofos, tanto do
período iluminista como de períodos anteriores e posteriores ao mesmo.
Começaremos a fazer está reflexão com base em alguns temas tratados por grandes
pensadores ao longo da história como, por exemplo, a escravidão e outras
situações relacionadas à questões de igualdade e preconceito.
Alguns filósofos como Jonh
Locke, por exemplo, defenderam assiduamente a escravidão. Muito antes do
período Iluminista, Aristóteles havia feito um tratado político defendendo a
escravidão. Montesquieu (este também do período iluminista), também apoiava a
escravidão, tendo-a por civil e tolerável. Voltairé, um dos pensadores citados
por Serrano e Walldman e que talvez tenha sido o maior pensador do que chamamos
de período iluminista, escreveu alguns textos citando questões como igualdade,
preconceito, propriedade, senhorio e
muitas outras como veremos
adiante.
Já que Voltairé é tido por
muitos como o maior pensador e critico do Iluminismo, partiremos da análise de uma
de suas mais importantes obras, o “Dicionário Filosófico” (1764), onde suas
críticas procuram demonstrar as contradições embutidas nas concepções que
ataca, onde na maioria das vezes as faz de forma leve e sutil, ridicularizando
a certeza humana em dados momentos. Daqui em diante, observaremos sua obra com
o fim de obtermos algumas conclusões e formarmos uma opinião consistente no que
diz respeito ao papel da filosofia nas questões escravistas da qual, no período
do Iluminismo, a África era a maior vítima.
No texto que colocaremos
em evidência, por conseguinte, fica claro que Voltairé era ciente que questões
relacionadas à escravidão perduravam por longos anos e que o continente europeu
sempre foi o grande manipulador desta “proeza”. Vejamos isto em sua definição
sobre escravos, no mesmo dicionário filosófico: “Tudo o que se pode recolher do
emaranhado da história da Idade Média é que no tempo dos romanos nosso universo
conhecido se dividia entre homens livres e escravos.”(VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário
Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.241).
Vejamos outro trecho da
obra de Voltairé onde relata a questão da escravidão como algo de longa duração
e até natural na abordagem que o mesmo faz na história da humanidade.
“A escravidão é tão antiga quanto a
guerra, e a guerra é tão
antiga quanto a natureza humana. Nenhum legislador da antiguidade tentou
ab-rogar a escravidão: ao contrário, os povos mais entusiastas da liberdade,
como os atenienses, os espartanos, os romanos, os cartegineses, foram os que
tiveram as leis mais duras contra os servos e os escravos. “
VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico.
São Paulo: Editora Escala, 2008. p.241
Voltairé também afirmava
ser a escravidão algo presente em diversas culturas, tanto no Oriente quanto no
Ocidente, entre judeus, muçulmanos (entre estes, africanos muçulmanos,
acreditem), e até mesmo entre os cristãos europeus. Vejamos mais uma de suas
falas no Dicionário Filosófico:
“Entre os africanos muçulmanos e os europeus cristãos
sempre subsistiu o costume de pilhar e de escravizar tudo o que é encontrado no
mar. Os religiosos de Malta, sucessores de Rodes, juram pilhar e acorrentar
todos os muçulmanos que encontrarem. As embarcações do papa vão prender
argelinos ou são capturados nas costas setrintoriais da África. Aqueles que se
diziam brancos vão comprar negros a bom preço para revende-los na América.”
VOLTAIRÉ, François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico.
São Paulo: Editora Escala, 2008. p.241
Como pudemos observar ao
longo das falas de Voltairé, é evidente que ele era conhecedor das práticas
escravistas que perduravam por muito tempo, e que eram praticadas não só por
europeus, mais por diversos povos colonizadores. Ainda em Voltairé e em seu
dicionário filosófico vejamos algumas de suas falas no tópico intitulado
“Igualdade”:
“O que um cão deve a outro cão e um cavalo
deve a outro cavalo? Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante; mas o
homem, visto que recebeu o raio da divindade chamado razão, qual é o fruto
disso? O de ser escravo em quase toda terra.”
VOLTAIRÉ,
François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008.
p.333
Voltairé desenvolve em seu
conceito de igualdade, uma crítica ferrenha às práticas escravistas ao longo da
história da humanidade. Crítica está que tem por finalidade questionar todos
estes períodos em que prevaleceu a escravidão, deixando claro que este é um mal
que não provém de ordem natural, mais da eminente ação do homem e de sua organização
social. Vejamos mais uma de suas falas onde isto fica evidente:
“Nesse estado tão natural de que gozam os quadrúpedes, as
aves e os répteis, o homem seria tão feliz quanto eles, a dominação seria então
uma quimera[1],
um absurdo em que ninguém pensaria, pois, para procurar servos quando não se
tem necessidade de serviço algum?“
VOLTAIRÉ,
François-Marie Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008.
p.333
Ainda falando com respeito
a questões igualitárias, temos um tópico denominado “senhor” no mesmo
dicionário filosófico que tem por finalidade trabalhar mais uma vez esta
questão do individuo que se sobrepõe à outro indivíduo. Vejamos um trecho do
mesmo: “Como é que um homem pôde se tornar senhor de outro homem e por que
espécie de magia incompreensível pôde se tornar senhor de muitos outros
homens?” (VOLTAIRÉ, François-Marie
Arouet. Dicionário Filosófico. São Paulo: Editora Escala, 2008. p.458)
Os autores de nosso texto
“A percepção da África”, alegam terem os filósofos “se esquecido” do continente
africano. De fato, Voltairé em suas palavras não faz referencia a África em si,
mais como observamos, expressava seu pensamento com relação a valores de
igualdade entre os homens, o que enquadrava o território africano e seus povos
de maneira indireta. O fato é que mesmo Voltairé, que fez questão de falar
tanto sobre suas concepções de igualdade, esqueceu-se das mesmas em suas
práticas no cotidiano como citam alguns documentos. É o que diz um trecho da
coleção Grandes Pensadores da história universal, da editora Abril. Vejamos: “Voltairé
por um lado defendia a liberdade, e pelo outro era sócio no tráfico de escravos
negros.[2]”
Se de fato o que foi publicado pela editora Abril for de verossímil coerência,
e entendermos que a prática de um ideal igualitário fala mais alto do que o
discurso concernente ao mesmo, de fato temos que concordar com Walldman e
Serrano e dizer que estão certos quando dizem ter os pensadores iluministas se
esquecido do continente africano. Mais
do que isto, saber que Voltairé nunca falou da África de maneira direta nos
remete a alguns questionamentos como por exemplo: por quais motivos teria
Voltairé enfatizado tantos períodos escravistas, em diferentes lugares do mundo
através de diferentes culturas, mais não fez questão de mencionar o que
presenciava em seus próprios dias no que diz respeito a prática escravista,
visto que, como dissemos anteriormente, ás práticas escravistas se davam de
maneira extremamente intrínseca com os povos da África subsaariana por parte
dos europeus? Será que Voltairé se sentia constrangido em falar sobre a
escravidão para com os povos africanos, visto que suas práticas não fariam jus
ás suas falas? Será que não citou estas questões por entender que, ao falar de
diversos momentos históricos em que se deu a escravidão, entendia que
indiretamente estava insinuando a situação que presenciava em seus dias? Estas são algumas questões a se pensar no que
diz respeito a filosofia no período iluminista no que diz respeito à prática
escravista intensa para com os africanos.
Nietzsche em sua
“Genealogia da Moral” irá desenvolver a idéia já apresentada em Humano,
Demasiado Humano e Para além do Bem e do Mal, de que existe uma dupla origem
para nossos juízos de valor, resultante de duas formas distintas de avaliar a
vida: a moral dos senhores e a moral dos escravos. Entretanto, por outro lado,
o protesto de Nietzsche, que vê na
humildade é simplesmente um aspecto da "moral dos escravos",
obviamente é dirigido ao típico conceito medieval de humildade[3].
Outro filósofo marcante do
iluminismo, mais precisamente do iluminismo francês, Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 28 de Junho de 1712 —
Ermenonville, 2 de Julho de 1778), considerou qualquer simples existência de
escravidão como prova evidente da decadência da sociedade civilizada em sua
obra “Discurso sobre as origens e os fundamentos de igualdade entre os homens –
1754.”
O filósofo e matemático
francês Marie Jean Antoine Nicolas de
Caritat, marquês de Condorcet (Ribemont ,Aisne, 17 de Setembro de 1743 -
Bourg-la-Reine, 28 de Março de 1794), normalmente referido como Nicolas de Condorcet escreveu um famoso
ensaio[4],
mais apesar de todo o esforço dele e de muitos outros pensadores, a abolição da
escravidão só veio a ser aprovada em 4 de fevereiro de 1794, na época da
convenção.[5]
Ensaio
de Condorcet
Deixemos que cada
indivíduo ao ler o que foi exposto até então, tire suas próprias conclusões e
reflita se acaso a África foi de fato esquecida pelos filósofos iluministas. E,
se de fato não fizeram questão de falar da África de forma direta, porque o
fizeram? Porém uma coisa é evidente: que o combate veemente á prática da
escravidão era algo que ainda estava muito distante da realidade do mundo ao
qual estavam inseridos estes pensadores.
3.
Etnocentrismo,
Eurocentrismo – entendendo melhor o preconceito
Como dissemos anteriormente,
buscaremos encontrar evidências que nos ajudem a entender a real razão para que
a Europa criasse uma visão tão repleta de aversão aos povos africanos. Para
entendermos isto melhor é preciso que façamos uma breve reflexão sobre três
conceitos: o etnocentrismo, o eurocentrismo e o afrocentrismo.
·
Etnocentrismo
O
etnocêntrismo consiste ao que cada grupo étnico tende a elaborar, valorizar no
que diz respeito a sua própria cultura. Podemos dizer que está é uma
característica universal inerente tanto aos povos nativos do terceiro mundo
quanto aos europeus. Segundo muitos pesquisadores, se faz comum a associação de
eurocêntrismo como mais um etnocêntrismo. Porém, deduzimos que o eurocêntrismo
se diferencia do etnocêntrismo por algumas questões.
·
Eurocentrismo
Sabemos que o
eurocentrismo não corresponde a uma única etnia, visto que na Europa existem
diferentes grupos étnicos. O eurocentrismo na verdade é uma visão articulada a
partir de suas referências clássicas: as civilizações grega e romana, onde
algumas características se destacam, como por exemplo os processos violentos de
uma ideologia e a falsificação histórica. Ou seja, a universalização do modo
europeu é o que diferencia o eurocêntrismo do etnocêntrismo.
Dentro dessa visão
greco-romana, que acabou por se tornar a visão do que hoje chamamos de
civilização Ocidental, as culturas dos povos dominados são retratadas como
arcaicas, primitivas e erráticas, que pouco progrediram e pouco influenciaram
no desenvolvimento da humanidade. [6]
4.
O preconceito atrelado a religião
A visão eurocêntrica sobre
a África, não está atrelada somente a questões étnicas, mais está fortemente
ligada a questões religiosas.
“As fábulas criadas sobre os povos africanos
já é muito antiga, mais toma ainda mais força quando a ideologia judaico-cristã
passa a fazer parte deste cenário.” O
pensamento europeu da época alimentava-se na Bíblia, na doutrina da Igreja e na
antiguidade Greco-romana.”
SILVA, Alberto da
Costa e. A manilha e o libambo: A África e a escravidão de 1500 a 1700. Editora
Nova fronteira. 2002. p. 855
Segundo Serrano e
Walldman, uma das grandes razôes para que o conceito de superioridade dos
europeus sobre os africanos se fizesse ainda mais forte do que sobre qualquer
outra cultura foi o conceito formado em cima da “teoria camita”.
“... a infame teoria camita, interpretação
que estigmatizava os negros enquanto descendentes do personagem bíblico Cam
como indignos, posteriormente conotada pelo pressuposto que os africanos
estariam fadados a escravidão.”
SERRANO, Carlos. WALDMAN, Mauricio. Memória
d´África – Temática Africana em sala de aula. Editora Cortez. 2007. p.25
Próximo
ao ano mil, as referências sobre o que era chamado até então de Aethiopia, estavam completamente
atreladas pelo imaginário da cristandade. Sobre as interpretações teológicas
cristãs, co-relacionadas com as geográficas, articulava-se a difusão da teoria
camita sobre a origem das populações negro-africanas. Mais do que isto, a cor
negra foi associada a uma representação da maldade bíblica, o que contribuiu
ainda mais para uma visão de desprestigio geográfico e cultural a África.
Essa
teoria camita surge de um conjunto de textos escritos por consagrados
“doutores” do século XIV, que explicavam que os descendentes de Cam – Cus,
Mesraim, Phut e Canaã – teriam povoado uma região que se estendia do sul da
Síria até o norte africano, onde Cus teria gerado os Etíopes, Mesraim os
Egípcios, Phutos os trogloditas[7] e
Canaã os Àfri e os fenícios. A interpretação de que os descendentes de
Cam seriam os povos Áfri e de que eles estariam sobre maldição foi compartilhada
por muçulmanos e judeus.[8]
As
imagens com relação aos africanos estavam tão atreladas ao imaginário europeu
que tiveram influência até mesmo na cartografia universal. A teoria camita e a
fusão da cartografia de Claudio Ptolomeu com a “cosmologia”[9]
cristã contribuem para que a intensificação do relegar a África à uma posição de inferioridade.
Claudio Ptolomeu
É
importante salientarmos que as palavras de Claudio Ptolomeu e suas teorias eram
ouvidas sempre com grande respeito por todos os estudiosos de sua época. Neste
período, Ptolomeu desenvolve uma série de idéias e contribui para o avanço da
ciência com seus trabalhos em matemática, astrologia, astronomia, geografia e
cartografia. Ptolomeu forma toda a cartografia medieval, onde os mapas
produzidos por ele seguem um padrão, onde a terra sempre está representada por
um círculo que contém as terras
conhecidas: Europa, Ásia e África, distribuídas no interior deste mesmo círculo
em forma de um T. O termo mais usual para esses mapas e suas representações era
“mapas T O”, que nada mais significava do que uma
abreviação de Orbis Terrarum, ou
seja, o círculo da Terra.
Mapa-mundi T
O, século XII
Um dos
mapas que mais representa a união entre a cartografia de Ptolomeu com a
teologia medieval é o mapa conhecido como “Psalter”
(1250). Nele, o que entendiam como paraíso terrestre estava representado ao
norte, no topo da imagem, e Jerusalém, o local da ascensão do Filho de Deus aos
céus no centro.
Mapa psalter
A
Igreja se apropria da cartografia de Ptlomeu para fortalecer sua teoria camita,
ou a cartografia de Ptolomeu é que se apropria da teoria camita da igreja? É
bem provável que seja a Igreja tenha aproveitado da cartografia para sustentar
sua idéia de que a população africana de fato seria oriunda de um povo
amaldiçoado, e por conta disso estaria em maldição.
A
Europa, cuja população descendia de Jafet (ou Jafé), primogênito de Noé, ficava
à esquerda (do obeservador) de Jerusalém. Vale salientar que o primogênito na
cultura (tradição) judaica, carregava consigo todo um significado místico, uma
idéia de filho separado para o sacerdócio. Logo, podemos supor que a teologia
medieval se apropria da idéia de descender do filho primogênito, do filho
abençoado. A Ásia, local dos filhos de Sem (o segundo filho de Noé),
encontra-se à direita. Ao sul surge a representação do continente africano,
remontado por esta forte idéia de maldição que pesa sobre as costas de Cam,
como dito anteriormente na explicação sobre a teoria camita.
O
imaginário europeu se encarrega de criar todo o tipo de mitos em referência aos
africanos. Acreditava-se fielmente que a parte habitável da Etiópia, por
exemplo, era moradia de seres monstruosos, que os europeus denominaram como “os
homens das faces queimadas”. A cor negra
estava diretamente associada ao mal, ao inferno, visto que o diabo nos tratados
teológicos, nos contos preeminentes deste período e até mesmo nas visões das
feiticeiras perseguidas pela inquisição, estavam geralmente ligados a cor
negra.
Outro
preconceito estabelecido sobre os povos africanos estava relacionado ao clima
tropical do continente. Esses preconceitos percorreram o imaginário europeu
desde a concepção da Igreja e, que as altas temperaturas no continente faziam
alusão ao inferno. Este tipo de preconceito relacionado ao clima seguiu até o
século XIX, onde esta mesma questão preconceituosa relacionada ao clima se fez
presente está mitos científicos oriundos
das concepções do Darwinismo Social e do Determinismo Racial, onde os africanos
foram colocados como homens preguiçosos, primitivos, incapazes de aprender,
onde o clima contribuía para esta “lentidão” na evolução desses seres. Por
conta disso, desta falta de progresso, dependeriam sempre do homem branco, mais
precisamente do europeu. Para que possamos entender melhor isto, faz-se
necessário entender o que é de fato o Darwinismo social e o Determinismo radical.
O
Darwinismo social consiste na tentativa de se aplicar o darwinismo nas
sociedades humanas. Este termo se popularizou por intermédio do historiador
norte-americano Richard Hofstadter. Este pensamento tem como base a idéia de
que existiram características biológicas e sociais que determinariam que uma
pessoa era superior à outra. Muitos destes padrões de superioridade estavam
vinculados à idéia de que estes indivíduos superiores dispunham de algumas
características como, por exemplo, maior poder aquisitivo, maior habilidade com
ciências humanas e exatas, aptidão para a arte e etc. Já os deterministas
radicais acreditam que todas as ações são determinadas pela hereditariedade e
pelo ambiente. Por meio do esclarecimento do que vêm a ser o Darwinismo social
e o Determinismo radical, fica evidente o quanto a África envolta em um
preconceito regido não só pelo imaginário europeu, mais posteriormente á
questões cientificas. Fugindo um pouco deste âmbito África-europa a qual se
dirige este trabalho, acrescento ainda que na Alemanha, durante a Segunda
Guerra Mundial, o ditador Hitler apoiava-se no Darwinismo radical afim de
rotular os judeus, os negros e outros, como uma raça “degradada”, enquanto que
os alemães eram tidos como modelo de desenvolvimento físico e intelectual. A
própria natureza, segundo Hitler, incumbia-se de eliminar os “fracos”.
5. A
África e o conceito de incivilizado
Entre todos os problemas
observados ao longo deste texto, como os agravantes espirituais, religiosos e
elementos fabulosos oriundos da Idade Média, estendendo-se até o período
mercantilista e daí por diante, surge então na fase industrialista uma outra
questão para se apontar a África como um continente inferior a todos os outros:
a carência de civilização. Juntamente com a especulação de “carência de
civilização” vem a questão da desorganização social, onde estabelece-se a idéia
de que o continente africano era habitado por povos sem nenhuma estrutura
social, desprovidos de organização. O Egito por exemplo, que todos
evidentemente sabem que desenvolveu uma ampla estrutura, segundo os europeus só
ô fez por ter tido um grande contato com os povos europeus, ou seja, teria sido
“arianizado”. Para que possamos melhor entender o porquê a África foi
considerada como um continente desprovido de organização social, de
intelectualidade e etc, primeiramente é preciso entender o que significava o
termo incivilizado para a ideologia dominante, ou seja, a européia.
Bem sabemos que tudo o que
era estrangeiro ou desconhecido para o europeu era considerado como algo digno
de monstruosidade, selvageria. Este pensamento ganhou ainda mais força na Idade
Média segundo o historiador Lee Goff. “Para a Idade Média, o estrangeiro e o
desconhecido são monstros, a ponto de que se misturam traços bestiais aos traços
humanos.” (LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval - vol. II; coordenador
da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 132).
O texto “A percepção da
África” evidencia, como já dito anteriormente, que o continente africano passou
a ser visto como o “canto periférico do mundo”. Mais o que e fato era o centro
para o europeu? O que o mesmo entendia por periferia? E por que a África estava
tão mais próxima deste conceito de periferia do que do conceito de centro?
O Europeu já permeia a
idéia organizadora há muito tempo, desde os gregos e os romanos. Vejamos:
“Ordem é o que podemos perceber no espetáculo
dos planetas onde cada elemento ocupa seu lugar e sua ordem sem um ser
empecilho para o outro. Esta sentença formulada no séc. XII no círculo da
escola de Abelardo, sugerindo a harmonia comum entre o cosmos e a congregação
dos homens, situa-se na longínqua herança da concepção antiga, grega e romana,
de “ordererum”.
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval
- vol. II; coordenador da tradução:
Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 305
O conceito de
centro/periferia nos ajuda a entendermos bem o que era o conceito de
civilizado/incivilizado para o imaginário europeu. Este conceito
centro/periferia perdurou ao longo dos séculos, mas ganhou força e se
estruturou de fato na Idade Média, onde a partir de então, passou a ser tido
como parte essencial da ordem universal, da estrutura e da forma como deve
funcionar isto no espaço das economias, das sociedades e das civilizações. Le
Goff menciona que podemos ver em Wallerstein e Braudel que este sistema existiu, funcionou e se
estabilizou de forma concreta a partir do século XV, e ganhou ainda mais força
nos séculos XVI e XVII com o inicio do capitalismo e da economia-mundo. Vejamos
como Le Goff usa de uma fala de Braudel, onde o mesmo cita estes conceitos de
centro/periferia como algo essencial para entendermos o que era o pensamento
social e econômico na Idade Média.
“... o centro, o coração, reúne tudo o que existe de mais
avançado e mais diversificado. O círculo seguinte só tem uma parte destas
vantagens, ainda que delas participe: é a zona dos “segundos brilhantes”. A
imensa periferia, com seus povoamentos pouco densos, é, ao contrário, o
arcaísmo, o atraso, a exploração fácil pelo outro. (F.Braudel)”
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval - vol. I; coordenador da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc
2006, Bauru, SP. p. 203
A Europa se via como o
centro do mundo. Olhava para si mesma e via-e como o oposto do atraso, do
arcaico, de tudo o que era desprovido de progresso e organização. Logo, tudo o
que não estava neste centro já se encontrava em condição de atraso, de subdesenvolvimento,
de incapacidade organizacional. Para os homens da Idade Média, o centro era o
que definiria o que viria a ser a periferia e a descentralização, ou seja, o
europeu era quem estava mais apto à saber quem e o que era a periferia, quem e
o que era civilizado.
A definição de centro para
os europeus na Idade Média também estava intrinsecamente atrelada ao
cristianismo. Os grandes pais e doutores da igreja estruturaram todo um
pensamento no qual Cristo seria o centro do universo, logo tudo o que estivesse
fora desse centro também estaria fadado ao estado periférico. Estes conceitos
de centro/periferia estão tão atrelados à fé cristã que tudo no planeta girava
em torno de dois centros (aqui surge também o conceito de policentrismo) que
seriam Roma e Jerusalém.
“A dificuldade em se pensar o centro foi
acentuada por certas características essenciais da Cristandade Medieval, que
possui dois grandes centros fundamentais, históricos, religiosos e ideológicos:
Roma e Jerusálem.”
LE GOFF,
Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário
Temático do Ocidente Medieval - vol. I; coordenador da tradução: Hilário Franco
Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p. 203
Estar afastado
dos centros significava para o europeu estar afastado de Deus, de Cristo. E, se
para a fé cristã todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus[10],
logo, estar afastado do mesmo é estar afastado do crescimento, da prosperidade,
da evolução, do progresso. A África se encaixava no “estar longe do centro“ em
todos os aspectos, inclusive no que dizia respeito ao plano espiritual
universal, metafísico. Mas, se até então o continente africano não era o único
continente a se cristianizar, porque então sofreu uma perseguição mais
intensificada se comparada a outros povos, como por exemplo, os orientais? Com
certeza, encontraremos boa parte desta resposta na questão da teoria camita que
citamos anteriormente, mas existiram outros fatores que contribuíram para que
povos como os do Oriente fossem vistos com outros olhos quando equiparados com
os povos africanos.
Le Goff e
Schmitt argumentam sobre a questão dos povos do oriente serem mais
“respeitados” do que os povos da África, principalmente a África subsaariana.
Eles dizem ser este “respeito” resultado da própria abertura destes povos onde
o Oriente passa a ser considerado pelo imaginário europeu como uma periferia
diferente, para melhor dizer, como uma
“fronteira” entre o centro e a periferia.
“Uma periferia revelou-se de
particular importância, a periferia oriental. Não somente porque ela é um
objeto de desenvolvimentos e de confrontos especialmente fortes entre
germânicos e bálticos, germanos e eslavos, germanos e húngaros, mas porque foi
a mais aberta, a que acabou por fim por colidir com a periferia de dois outros
conjuntos de sociedades e de duas civilizações que a bloquearam.”
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval -
vol. I; coordenador da tradução: Hilário Franco Jr. – Edusc 2006, Bauru, SP. p.
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Em alguns
textos que têm por finalidade o estudo dos povos orientais e suas estruturas,
observamos muitas semelhanças com toda a organização européia, principalmente
no que diz respeito à economia. Vejamos a seguinte citação de Paul Gareli no
que diz respeito ás estruturas “feudais” dos povos asiáticos.
“Todos os Estados que surgiram
devido às desordens que sacudiram o Oriente Próximo no decurso dos séculos XVII
e XVI – a observação não diz respeito unicamente a Mesopotâmia – possuem, como
traço comum, instituições que quase sempre se classificam como “feudais”. Tanto
na Ásia menor hitita como nos reinos sírios, em Mitani como na Assíria ou na
Babilônia, os soberanos são vistos a distribuir terras, supostamente “feudos” a
príncipes ou particulares, considerados seus “vassalos”.”
GARELLI, Paul. O Oriente próximo
asiático: das origens ás invasões dos povos do mar. Pioneira: Editora da
universidade de São Paulo. 1982. p.318
O que podemos
concluir de tudo isto é que o conceito de civilizado/incivilizado para o
europeu se deu de forma diferente e em momentos diferentes, porém a base deste
conceito sempre foi à mesma, onde se via sempre o outro como algo selvagem e
desprovido de qualquer capacidade organizacional, havendo algumas exceções,
como no caso dos Orientais, por exemplo, como observamos no que foi citado por
Garelli anteriormente.
Toda a
percepção da África girou exatamente em torno da idéia que os europeus tinham
de que, se o continente africano não era capaz de ter uma estrutura
sócio-econômica ao menos semelhante à européia, logo este continente estava
desprovido de qualquer qualidade organizacional. Assim concluímos que todo o
preconceito com o povo africano girou em torno da originalidade que os mesmos
tinham. Preconceito este resultante de diversas questões como a religião e o
eurocentrismo, mas principalmente, pelo medo que os europeus demonstraram ter
em assumir que não eram o único modelo de estrutura social a ser seguido.
[1] Quimera:
Fantasia, sonho.
[2] Grandes
Pensadores da História Universal. Editora Abril. p,749. Vol. 3
[3]
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Editora Martins Fontes. 2007. p.520
[4] Condorcet
- Réflexions sur l’esclavage des
nègres. Neufchatel : Société Typographique, 1781.
[5] vide: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/2007/03/28/000.htm
[6] ORTIZ,
Renato. Mundialização e cultura. São Paulo. Brasiliense. 1994
[7]
Troglodita: Que vive em cavernas ou sob a terra. Individuo primitivo.
[8] (STENOU,
Katérina. Image de L´Autre: La difference Du mythé au préhúgé. Paris. Edition
UNESCO. 1998. p.72)
[9]
Cosmologia: ciência que trata das leis gerais que regem o universo.
[10] Esta fala faz alusão a um trecho da Bíblia
escrito pelo apóstolo Paulo em sua carta aos cristãos que estavam em Roma. Este
trecho encontra-se no livro intitulado Romanos; capítulo 8 versículo 28.
Muito bom, gostei do seu esforço pra fazer esta pesquisa excelente.
ResponderExcluirMuito bom meu amigo!
ResponderExcluirGostei muito do trabalho!
Abraço!
Douglas
Excelente artigo, caiu que nem uma luva para o momento assombroso no cenário da Comissão dos Direitos Humanos...
ResponderExcluirValeu!
;)
Olá, estou compartilhando este artigo e guardando pra ler com bastante cuidado :)
ResponderExcluirParabéns pela iniciativa
Muito boa analise
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