Ser Pensante

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"Todo homem honesto deveria tornar-se filósofo, sem se vangloriar em sê-lo." Voltairé

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Farisaísmo: a religião dos milênios - Parte V





      Antes de desenvolver a crítica reflexiva sobre o farisaísmo e como o que há de negativo sobre esta vertente influenciou toda a nossa maneira de ver e interagir com o mundo (se é que o farisaísmo já não estava entre nós antes mesmo do surgimento do partido farisaico), minha proposta inicial será a de contemplar os aspectos positivos, mesmo nos mais combativos por Cristo ao longo das narrativas bíblicas, para além dos fariseus elucidados como homens que tiveram boas ações, como Nicodemos e José de Arimateia, como demonstrado anteriormente.


      Se existe uma característica a ser tomada como exemplar entre os fariseus, essa é a maneira clara e nada omissa como se posicionavam em uma época de conflitos latentes. Desde sua origem, com o movimento dos macabeus contra a helenização da cultura judaica, os fariseus parecem não terem errado no sentido tão criticado pelo mesmo cristo que os criticou por outras razões, no que tange à mornidão.[1] Se a dualidade do quente e frio, apontados por Cristo no relato das visões do apóstolo São João no livro do Apocalipse são dignas de uma boa discussão e de uma crítica à exaltação em se escolher um lado entre os extremos, isso merece uma atenção e uma reflexão sobre, mas o fato é que há uma critica veemente tanto verbal e de maneira direta, como também nas atitudes e nos relatos do cânon bíblico de condenação à falta de posicionamento em situações de conflito cruciais para a época. Nesse sentido, a leitura que faço do movimento farisaico e a qualidade que lhe atribuo, pode ser transferida também para diversos nomes e movimentos ao longo da história que podem ser acusados por diversos erros, mas nunca pela falta de posicionamento. Os fariseus não ficavam no “meio termo” quanto à dominação dos judeus frente outros povos e frente um embate vindouro para com Roma. Muitas narrativas que podem ser usadas aqui, nas abordagens inquisidoras que os mesmo fizeram à Cristo, afim de expor “o lado em que ele estava” , podem ser vistas também pelo viés  de um movimento político legítimo de um povo, que quer saber muito bem o que pensa um homem influente sobre eles, antes de desejar ser influenciado por tal individuo. Claro que aqui proponho apenas uma reflexão alternativa frente as já usuais críticas à estas abordagens, tanto à Cristo quanto à Nicodemos, por não estarem simplesmente dispostos a ouvi-los, mas a deturpar a seu favor o que ouviram.


      A eloquência, as qualidades no que diz respeito à força argumentativa e à destreza para se manipular movimentos e pessoas em processo de movimentação, são “qualidades” dignas de todo e qualquer individuo, em ocasiões de grande ou menor escala, que contemplam em si o espírito do farisaísmo, tão presente em nossa história humana. Se pensarmos em grandes lideranças, tanto políticas quanto artísticas e religiosas, ou mesmo em lideranças em estruturas menores, como um gerente em nosso emprego, por exemplo, veremos que apesar da cegueira que o poder traz a estas figuras e a forma autoritária e legalista como passam a agir tomam conta de todos os seus passos, estas pessoas também contém grandes qualidades, que muitas vezes contribuíram para que chegassem ao topo de alguma pirâmide ou à um lugar mais alto dela. Em grande medida, compreendo que um posicionamento contrário ao espírito farisaico que há em nós, abarque uma leitura sobre o outro que não o enquadre apenas nas posições postas de “vilão/herói”, “bom/mau”, “grande/pequeno”, “belo/feio”, e assim por diante. Se por um lado o discernir sobre o grau de quentura ou frieza sobre todo e qualquer posicionamento[2] se faz necessário para lidarmos melhor com ele e suas convicções, por outro o reconhecimento de quaisquer características de frieza em alguém que está pegando fogo, ou de quentura em alguém que parece congelado, fazem-se tão necessárias quanto, para nos diferenciarmos da visão maniqueísta e legalista que podem levar um movimento e uma ideologia em muitos aspectos bem intencionada, legítima e organizada como a dos fariseus, ao ostracismo ou à um única lembrança sobre si: a de ser uma proposta intransigente, que perdeu espaço e passou apenas a atacar e perseguir propostas mais sólidas, receptivas, inclusivas, didáticas e bem contextualizadas. Não foi exatamente o que ocorreu para com o grande partido farisaico, frente à ascensão da mensagem de Cristo e dos apóstolos entre os judeus?


    Ainda no sentido da contra-argumentação primária sobre as possíveis qualidade que levam ao erro , presente nos fariseus, podemos retornas às origens da palavra hipocrisia no hebraico, que estavam presentes nas falas e posturas farisaicas, ao investigarem quem e o que se posicionava de forma A ou B, tal qual faziam com cristo e alguns dos seus. Como evidenciado aqui, a hipocrisia para um hebreu girava em torno de ações que revelassem uma postura antagônica à crença tida como correta. Sobre o conceito de ímpio como o conceito de significância ao termo hipocrisia, estavam inseridas as concepções de que era preciso ser da pátria judaica, condenando assim o estrangeiro como hipócrita, era preciso ser converso, condenando assim o que não professa a mesma fé como hipócrita, era preciso ser praticante desta fé e dos mandamentos, e não um mero gentio com regalias pagãs , condenando tal gentio como hipócrita, o que em nossos dias culminou em “é preciso ser ortodoxo para não ser herético”. Se por um lado a postura combativa à omissão presente em sua época, que favorecia os que dominavam a Palestina (vide o exemplo já ressaltado aqui, da forma como agiam e eram criticados pelos judeus os publicanos), é digna de admiração, por outro essa mesma postura caiu no erro de desconsiderar o diálogo e o pedagógico sobre o diferente, e mais, sobre os que estão em outros contextos sócio-históricos de “quente e frio”, como por exemplo, muitos gentios que não eram romanos ou gregos e que estavam diante daquele contexto tempestuoso. Nesse sentido, uma postura mais abrangente e dialógica com o todo, ao menos daquela vez e naquela contexto, como foi a postura de Cristo e de sua mensagem, teve maior êxito sobre a intransigência odiosa de quem quer apenas explicar, sem levar em consideração que um dia já esteve confuso e, alguma medida. Nesse sentido, toda a postura contra cultural às dicotomias farisaicas que marcam nossa história, sempre virá não para explicar, mas para confundir. O paradoxo ao movimento certeiro de um farisaico parece dar-se no ser paradoxal frente o mesmo.



[1] Apocalipse 3.16
[2] “Todo ato é um ato político”, segundo Paulo Freire.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Mas afinal o que é Rock n' Roll? Os óculos de Lucas ou o olhar de Orelha?





    Meus tempos de adolescente e minha geração reproduziram e prepararam o terreno para o que estava por vir: a instauração de uma definição definitiva (ao menos até aqui), de uma divisão de classes que se manifestava sobre o viés da divisão das tribos culturais e gêneros musicais. Isto ficou ainda mais evidente a mim quando pude atuar como docente na rede pública do município de São Paulo, no Ensino Fundamental. Ainda está fresca em minha memória a divisão que havia em muitas classes, principalmente no nono ano do ensino fundamental, que comporta alunos entre 14 e 15 anos, faze em que parecem estarem mais se identificando e se definindo com relação ás suas preferencias e gostos, dentre elas musicais e culturais.
   
    Em uma das classes em que eu lecionava, havia uma grande rixa entre o lado esquerdo da sala, que comportava na frente uma parte dos alunos que eram mais quietos e tímidos e no fundo um grupo de amigos que se identificavam com o rock e sempre carregavam consigo um livro ou um mangá, e a turma do meio e do lado direito, grande maioria, de alunos que se identificavam com o funk ostentação ou mesmo com estilos musicais como o pop e alguns com o rap. Era nítida também a diferença no que tange a estrutura familiar. Essa maior parte era composta pelos alunos que evidenciavam maior instabilidade economica. Eles mesmos já se taxavam, sendo a galera "da esquerda" a parte "desenvolvida culturalmente e mais interessada em estudar" da classe, e o resto "os pobres, ignorantes, perdidos e destinados a um trágico futuro" do funk ostentação. Claro que ao adentrar à sala de aula, sendo eu um professor jovem e que carregava uma estética que me identificava mais com a turma do rock do que com a galera do funk, os alunos "da esquerda" já tentavam me trazer para o seu lado, ou melhor, já tinham cravado que eu pertencia à sua tribo. Logo de cara vieram as criticas à turma "do meio e da direita", como "os alienados da classe que não merecem respeito". Mas, para a surpresa de todos, coube a mim fazer uma simples pergunta a classe: "Um rockeiro é melhor que um funkeiro? Por que? " A partir de então um extenso e contínuo diálogo, onde eu, como docente, tinha por preocupação desenvolver o pensamento crítico para além da identificação com determinados gêneros musicais, passou a fazer parte do cotidiano desta turma. Claro que com o passar do tempo os alunos "da esquerda" se mostraram muito mais interessados nessa abordagem, pois eram os mais interessados em tudo o que era proposto por qualquer professor, mas é nítido que houve ali uma revisão da "matéria dada" sobre o preconceito e falta de compreensão que criamos sobre o outro quando não observamos o contexto no qual este outro está inserido, é protagonista e os possíveis tempos históricos que produziram, moldaram ou influenciaram em sua ação comportamental, principalmente os fatores sócio econômicos. Essas passaram a ser abordagens tão importantes em minhas aulas, tanto quanto discussões como a Revolta da Vacina no Rio de Janeiro em 1917. Aliás, esse foi um tema escolhido a dedo para o trato para com esta classe exclusivamente, pois traçava todo um processo histórico de exclusão que culminou no surgimento dos morros no Rio de Janeiro, o que consequentemente veio a calhar com a existência de diversas tribos culturais presentes em nosso tempo histórico, com a galera do funk ostentação que compunha a grande parte daquela classe. De cara não consegui estabelecer a ponte entre os alunos "da esquerda" e do "centro-direita", tal qual esta ponte  que por muitas vezes se estabelece no mundo dos adultos pelos rótulos e resumos das pessoas que fazemos diariamente, tanto no campo da política quanto para além dele. Tanto Lucas e Orelha como Scalete, na final do Superstar, quanto a classe em que eu estudei nos anos 1990 e as classes em que lecionei na segunda década dos anos 2000, evidenciavam essa luta de classes, que pode ser compreendida sobre o viés do econômico, mas que vai para além dela.

    Estas gerações, tanto do final dos anos 1990 como do início do presente século, especialmente no Brasil, foram engolidas pela Indústria cultural (abordamos o conceito no texto anterior), que visa, antes de tudo, a manutenção do status quo. O sistema capitalista dita as regras do jogo economicamente, mas culturalmente o espaço ideológico sempre está em disputa. Nesta disputa, a apropriação do rock como gênero de pessoas bem estabilizadas cultural e economicamente, e a forma como ritmos como o funk e o rap passaram a serem taxados como expressões de um povo pobre, desprovido de educação e cultura, afastaram não só da população a construção histórica sobre estes gêneros musicais, mas também a realidade dos mesmos, fazendo com que ambos deixassem de ser instrumentos de contestação, tal qual o foram em sua origem, no sentido de construção ideológica por meio da postura dos artistas e de suas letras. Nesse sentido, o rap e o funk no Brasil ainda comporta alguns artistas que contestam a apropriação do mercado e da mídia feita sobre seus gêneros musicais, mas o rock, de fato, já abraçou o deus mercado e caiu no erro já alertado pelas escrituras bíblicas tão conhecido: não se poder servir a deus (sua causa ou ideal), e à Mamon (dinheiro, sistema). E aqui cabe a pergunta que dá título a este texto.

    Se a origem do rock nos remete a um movimento de classes sociais menos abastadas economicamente e que estavam sofrendo um verdadeiro estupro cultural, fruto da colonização, escravidão e imperialismo ao longo dos séculos do europeu sobre os povos negros e latino-americanos, evidenciado assim a ascensão de um movimento cultural e gênero contestador, e perdeu isso ao longo dos tempos, quem mais estaria representando essa "atitude rock and roll" e fazendo as pedras rolarem na final do Superstar: a banda de som pesado que fala sobre amor e crises existenciais, que tem como atrativo um vocalista branco, loiro, de olhos azuis, hétero sexual e de origem econômica bem estabilizada, ou a dupla de garotos de 17 anos de idade, vindos da periferia do Rio de Janeiro negros, sendo um deles portador de uma deficiência visual e representantes de um gênero musical que denota grande influencia do soul e do funk music sobre o pop que fazem? Bom, por mais que você não consiga enxergar em Lucas e Orelha atitude as influencias do Rock que estou apresentando, que ao meu ver se evidenciam em suas vidas e propostas, e não unicamente em suas letras apresentadas ou na forma como abraçam a mídia, principalmente a global que sempre se posiciona contra as populações mais pobres (isso o Scalete também está fazendo, só pra constar), os comentários nas redes sociais preconceituosos referentes a dupla já evidenciam que eles fizeram as pedras rolarem.



    O que podemos refletir e concluir de tudo o que foi exposto até aqui é a necessidade, que se faz urgente, de apropriação da intelectualidade e do pensamento critico sobre o mundo que nos cerca e que abarca questões múltiplas para além do que a indústria cultural quer nos impor como leitura. Os óculos para vermos sobre o que está posta a representatividade de Lucas e os ouvidos para ouvirmos o que Orelha está cantando para além daquilo que está cantando, se fazem urgentes se quisermos lutar contra toda a espécie de opressão e preconceito. Entender que Scalete é uma boa banda de Rock no sentido musical, mas que o rock se estende para muito além de bons acorde riffs e composição melódica, e que sempre foi característico deste genero (isto pré indústria cultural) a contestação do status quo vigente, e isto evidencia que Scalete talvez seja uma boa banda, que toque rock mas que não faça as pedras rolarem como Lucas e Orelha, talvez sejam elementos básicos para levarmos a qualquer público, seja ele de Lucas, seja ele de Orelha, seja ele dos jovens que sentam ao fundo na "esquerda" ou que compõem a classe quase que em um todo no "centro-direita", podem ser pontes para o incio de um reflexão e atitudes que venham a libertar definitivamente nossa geração e as gerações posteriores das amarras ideológicas do mercado cultural. Nesse sentido, não precisamos que Lucas e Orelha sejam os novos Tupac e Sabotage necessariamente, maos podem enxergar neles está mensagem, simplesmente pelo que os compoem enquanto classe social e produto de todo um processo histórico, sendo eles, só por isso e ao meu cer, a verdadeira expressão do rock que empurra as pedras ladeira abaixo sobre o preconceito.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Mas afinal o que é Rock and Roll? Os óculos de Lucas ou o olhar de Orelha - Parte 2






    Aos que são Maju mas não podem ser Lucas e Orelha, cabe uma breve reflexão sobre a proposta do rock, sua essência e, principalmente sua origem, não para convencer aos que não sejam Lucas e Orelha para que deixem de ser ou sejam criticados por serem Scalete, ou até mesmo Versales (a crítica que segue adianta serve também para refletirmos sobre a torcida contra e comemoração pela saída do grupo Dois Africanos), mas para que façamos um balanço geral sobre os posicionamentos do brasileiro quando se posiciona sobre música, especialmente nesta geração.


    Para muitos não é novidade, mas o Rock and Roll tem sua origem na África. Os negros tirados de suas terras por conta do advento da escravidão e da colonização da América por parte do branco europeu resistiram inclusive culturalmente à opressão, fazendo pedras rolarem ao som de cada nota entoada por vozes como as dos Spirituals por exemplo. As lavouras de algodão no sul dos Estados Unidos deram inícios aos ritmos e gêneros que nos anos 1900, pós Guerra Civil norte americana e uma economia que andava em frangalhos, além de todo um recente processo de abolição da escravatura, foram o palco histórico dos pais e avôs do que hoje conhecemos como Rock. Músicas como “St Louis Blues” e “Yellow Dog Blues”, compostas por William Chistopher Handy em meadros de 1903, tocavam nas questões relacionadas às condições dos negros nos EUA e a escravidão. A época subsequente, décadas de 1920 e 1930, renderam uma ascensão desse tipo de música, que viria a se desenvolver com homens negros desempregados que carregavam seus violões pelo sul dos Estados Unidos, região mais pobre do país naquele momento. O Blues sulista do Delta do Missisippi e o toque de positividade e orgulho do negro foram desenhando um estilo musical que seria proeminente de tudo o que hoje vejos como música e atitude Rock and Roll. Outro segmento de grande influencia no gênero foi o gospel, onde os diálogos de chamado e resposta que tinham origem nos cantos africanos deram origem a forma dançante e participativa do rock, distinguindo-o da música erudita. Um pouco mais adiante, temos o surgimento do Jump band jazz, marcado pelo contagiante uso do saxofone. A música negra já tomava conta dos Estados Unidos da América e contagiava, inclusive, os filhos do colonizador. Afim de participarem do movimento cultural propagado pelos negros, os brancos norte americanos tentaram desenvolver as suas vertentes musicais próximas ao blues em evidencia, surgindo assim o folk e o country. Coincidentemente, temos aqui o início da formação do que foi chamado pelos sociólogos Theodor Adorno e Max Horkheimer de Indústria cultural.


    Após a II Guerra Mundial o rock começa a adquirir características de entretenimento. A indústria cultural produzida na época, já posta sobre os interesses do capital desde a época de 1030, como apontam Adorno e Horkheimer, não demorou muito para entender que era preciso levar ao jovem branco norte americano uma música com a qualidade e o ritmo contagiante que só a música produzida pelos negros nos Estados Unidos poderia oferecer. Nesse contexto surge o rockabilly, que culminou para dar traços finais ao que viria ser conhecido como Rock and Roll, inserindo os brancos a um gênero musical e a uma cultural contestadora do erudito europeu e do colonizador e, ao mesmo tempo, afastando os negros daquilo que lhes era próprio. Poderiamos dizer aqui que o mercado passou enfim a aceitar a música negra, mas não sei se é exatamente esta a questão. Poderíamos dizer que o mercado contribuiu para uma miscigenação musical? Talvez, mas ainda acho esse tipo de perspectiva ingênua. Mediante a proposta sociológica oferecida por Adrono e Holkheimer com o conceito de indústria cultura, eu diria que o mercado norte americano se apropriou da cultura musical negra, moldou o branco a não apenas aceitar e se inserir nessa cultura como se apropriar dela e negá-la, inclusive em sua origem (e é justamente aqui que quero chegar sobre esta breve explanação referente a final do Superstar). Sim, o rock embranqueceu depois de Elvis. Ele não inseriu o branco, ele excluiu o negro. Daí você pode me perguntar: “E nomes como Hendrix?” – pois bem, talvez nomes como Seu Jorge, no Brasil, ofereçam a resposta à sua pergunta.


    Recentemente, o músico brasileiro deu a seguinte declaração, quando questionado sobre o Rock e a participação do segmento, inclusive a sua própria:

  
“Pô, eu sou brasileiro, nasci no Rio. Sou do subúbio. O rock não chegou. O rock não é um gênero pro negro, apesar de Jimi Hendrix.”



    A perspectiva de Seu Jorge sobre a influencia do rock sobre si parece ser muito válida e de grande utilidade para a promoção de uma reflexão sobre o fato de que talvez o Rock nunca tenha chegado verdadeiramente no Brasil.  Um fator importante nesse contexto e que merece grande atenção é que nos anos 1960, auge do desenvolvimento da Música Popular Brasileira, havia um crescente movimento contra o uso da guitarra elétrica, vista como um instrumento que iria na contramão da nossa cultura e da formação da nossa identidade, reconhecida por muitos como “o instrumento do imperialismo”. Não cabe a mim fazer o julgamento sobre esta percepção frente o uso deste instrumento, sendo eu, inclusive, um guitarrista amador e antes de tudo um amante do rock. Mas, como alguém que cresceu na periferia paulistana, eu com certeza posso afirmar que o gênero musical não chegou da forma devida ao subúrbio e às periferias do Brasil, e este fator fica expresso por diversas formas, e vou evidenciar isto com as minhas experiências no ensino público periférico, tanto como aluno quanto como professor.



   Nos anos 1990, época em que eu atuava no seio educacional como discente, o rock tinha grande influencia sobre alguns alunos das salas de aula onde estudei. Quem eram esses alunos? Geralmente os que tinham condições melhores. Minha escola era localizada em um bairro de classe média alta, que fazia ligação com bairros periféricos mais distantes. Sendo assim cada sala evidenciava uma verdadeira luta de classes, tal qual a final do Supestar. Os jovens que se identificavam mais com o Rock, principalmente o pop, o nacional e o heavy metal, geralmente eram os que tinham os melhores cadernos, as melhores mochilas, que iam e voltavam ou de carro ou de van escolar e que não faziam uso da merenda oferecida na escola, gastando bons trocados na cantina. Os que não se identificavam tanto com o estilo, ou os que se identificavam com outras vertentes do estilo, como o punk ou mesmo as experiências de bandas como Charlie Brown Jr e Rage Against The Machine, eram os que se encontravam nas minhas condições, que eram opostas às dos jovens rockeiros evidenciados anteriormente. Geralmente, ou nos identificávamos com a música gospel, já que grande parte dos jovens periféricos nos anos 1990 eram filhos de pais evangélicos (cabe aqui uma reflexão à forma como as igrejas neopentecostais contribuíram para o acolhimento do Rock nas camadas mais pobres, especialmente na cidade de São Paulo nos anos 1990), ou se identificavam com outras vertentes como o samba, o pagode, o rap, o axé, o forró e o crescente funk. E o que ocorria no seio desta composição de comunidade escolar heterogênea? Mais uma vez, lembremos da luta de classes. Os jovens que não eram rockeiros eram vistos de maneira pejorativa pelos rockeiros e, claro, havia á resposta à esta reação, já que toda a ação gera uma reação. As contradições, a auto afirmação e as disputas ideológicas do território já estavam postas, na nossa infância, juventude e adolescência, mas ainda não nos dávamos conta disso. Talvez alguns da minha geração não tenham se dado conta disso até os dias atuais e, só a partir desse dado momento,ao lerem um texto como esse, passem a refletir sobre o contexto histórico cultural brasileiro nos anos 1990, especialmente entre estudantes da rede pública municipal. A questão pode ser polemica, mas acho honesta e bem contextualizada. E os anos 2000? E a segunda década dos anos 2000? Alteraram esse quadro? Bom, a partir daqui creio ser válida a contribuição de um breve relato de minha experiência com a “minoria do rock” e a “imensa maioria do funk” como professor da rede pública municipal neste tempo histórico e no atual momento. Vale a pena esperar e conferir a continuidade deste texto.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Mas afinal o que é rock n’ roll? Os óculos de Lucas ou o olhar de Orelha?

     
    


   Como se não bastasse me pegar assistindo de maneira totalmente envolta a final do programa Superstar (sem falar dos outros domingos em que fui um telespectador do mesmo programa e, consequentemente, global), me peguei também sobre uma imensa vontade de escrever sobre o mesmo. Não apenas sobre o programa, sobre a final, mas sobre a banda vencedora, mas sobre tudo o que me fez ver aquele acontecimento como algo para além de uma mera final de mais um reatily show simplório e previsível relacionado à música e ao show business.



    Minha expectativa sobre o programa final se deu, em grande parte, por conta dos protagonistas envolvidos na última chance de levar o título de Superstar 2015. Duas bandas de rock e duas bandas com propostas, que para o meu espanto, uma parte considerável dos que se dizem representantes do rock contemporâneo viam como “antirock”. Só neste sentido, tive a percepção de que toda a questão iria muito além de apenas se discutir um gênero musical e seus possíveis favorecimentos e desfavorecimentos ao título na final do programa, ou mesmo da proposta musical de cada banda finalista apresentada ao longo do programa.


    Muito antes de o programa começar, acompanhava pelo Facebook diversos comentários acerca de uma possível marmelada global em dar o título a banda de rock Scalene,  o que para a maior parte das pessoas que viam desta forma este possível favorecimento, evidenciaria mais uma vez, uma postura racista da Rede Globo de Televisão. Pois bem, o programa começou e para inflamar quase todos (já vamos entender o quase) os ânimos nas redes sociais, a primeira banda a ser eliminada foi Dois Africanos, justamente a banda de maior torcida (pelo menos entre o público do meu Facebook em particular), em oposição aos “favoritos” Scalene. Minutos antes muitos já alertavam para uma possível eliminação desta banda pelas questões de cunho racial evidenciadas acima. Confesso que me questionei quanto a isso. Não vi essa desconfiança como exagero, mas também não acredito que a banda poderia ser eliminada ou perder o programa unicamente por serem negros e africanos, justamente por uma série de outros fatores, como o ritmo musical bem diversificado e o próprio dialeto usado nas músicas, onde as letras não ficavam tão claras. Levei em conta que se tratava de um programa que apesar de abranger diferentes estilos musicais, se destina a um público que consome música pop, e que essa preferência sempre acaba ficando clara na votação do público, como aconteceu inclusive com a banda Malta, vencedora do último reality, que se propôs a fazer rock inicialmente, mas que ao longo do programa, talvez justamente por perceber isso, migrou seu estilo para o pop, principalmente no que diz respeito às composições. Estava crente de que tudo seria possível e, ainda estou, de que nunca será possível saber o que de fato acontece para que bandas ou cantores x sejam vencedores desse tipo de programa, mas ainda me firmo na questão da estética musical mais voltada para o pop, por ser o estilo de música de mercado.


    Pois bem, passado o ocorrido com a banda Dois Africanos, Lucas e Orelha passaram a ser a banda representante do que estou chamando aqui de antirock, e a torcida pelos garotos passou a ser imensa. Unicamente por apresentarem um estilo mais voltado ao pop, já evidenciado aqui como o gênero de maior popularidade e que sempre entrará como favorito no programa? Pelo que li nas minhas redes sociais especificamente, parece que não. E os que estavam torcendo contra ele, torciam contra unicamente por motivos musicais contrários aos que torciam a favor? Também arrisco dizer que não. Ora, então a minha maior probabilidade, de que a banda campeã o seria por conta do estilo musical, parecia estar sendo colocada em cheque, e isto ficou comprovado ao longo do programa e após o resultado final.


    A banda Versalle foi a segunda eliminada e a final foi perfeita para evidenciar aquilo que eu já estava percebendo ao longo do programa: Scalene e Lucas e Orelha, representavam muito mais do que apenas dois gêneros musicais, eles representavam estilos de vida, segmentos da sociedade, em suma, representava pessoas, tal qual os políticos, nesse atual sistema, supostamente deveriam fazer (alguns até fazem e isto já seria assunto para uma outra ocasião).


    Ao longo das apresentações, sendo a primeira da banda Scalene, comecei a observar as pessoas que estavam a torcer por um e por outro. Enquanto a banda Scalene tocava, uma série de pessoas na plateia do Superstar se colocava de pé para dançar e aplaudir sua banda favorita. Na base do “olhomêtro” (aqui fala um telespectador de televisão, não um pesquisador de dados estatísticos), a torcida de Scalene era composta de pessoas brancas, que pareciam ser de uma camada social privilegiada  economicamente e que acreditam consumir um estilo de música que não se mistura com uma determinada gentalha. De modo contrário, comecei a observar que as pessoas que se colocavam a dançar e a torcerem por Lucas e Orelha, tinham justamente o perfil contrário. Minhas desconfianças estavam postas. Aquela final representava muito mais do que uma final de um mero reality show. Aquele programa poderia ser um verdadeiro objeto de estudo sociológico muito bem discutido, desde uma simples postagem de um blog até o meio acadêmico. O que fiz para continuar a observação sobre esta constatação inicial? Me dirigi para as redes sociais, inclusive para além do meu Facebook particular que demanda um público que com certeza iria se identificar mais com a banda alternativa ao gênero musical de gente de bem. Ao me dirigir ao Twitter tive a plena convicção de que não se tratava de um rito no escuro, um chute no vácuo, Lucas e Orelha de fato representavam ali uma camada social pobre e negra, e Scalene o contrário. Os perfis que compartilhavam fotos, textos e mensagens, elucidava esse fator. Conteúdos dos mais diversos, mas diversificados. Não consegui encontrar sequer um twitter dos que se colocavam a torcer por Lucas e Orelha que se colocasse a ofender a origem ou os traços físicos dos membros da banda Scalene. Já o contrário...


    O programa terminou. Ao longo da apresentação da dupla Lucas e Orelha, a porcentagem foi subindo e, antes mesmo que a canção terminasse, já estava decretado o vencedor e, com isso, o ódio que iria se espalhar pelas redes sociais contra a camada que os garotos representavam. Dentre tantas barbaridades, as clássicas: “votaram neles os que votam na Dilma e recebem Bolsa Família” e “Como pode um preto e um preto vesgo, vencerem uma banda com um lindo vocalista, como a Scalene tem?” . Disso para baixo. Já prevendo isso ao longo das apresentações da banda, minha identificação com os garotos que já era grande ao longo do programa, foi potencializada. Lucas e Orelha não eram a alternatividade musical e ideológica de Tom Zé, Criolo, Chico Buarque, RATM, ou mesmo os Racionais em seu início, que tanto me atraem, nem na sonoridade nem em termos de composição. Eles eram a alternatividade enquanto indivíduos, e apenas isso bastava. Eles eram o contraponto do pop por sua origem e postura humilde. Só o fato dos garotos agradecerem aos prantos a seus pais, de terem escolhido um negro para que os apadrinhasse (e aqui também creio que a identificação com Thiaguinho, que por sinal está bem longe de ser uma preferência musical minha, também tenha se dado pelo reconhecimento dessa origem social) e a emoção de não estarem acreditando que sim, é possível que um jovem, nordestino, negro e pobre se destaquem de alguma forma, ainda que pelos meandros do próprio capital e indústria fonográfica que tanto critico sejam o meio, já eram evidencias suficientes para acreditar que Lucas e Orelha não representavam apenas aos negros, pobres e nordestinos de nosso país, mas representavam também a mim e aos que se indignam com uma sociedade que massacra pessoas como Lucas, Orelha e os que se identificam com eles. Não, eles não querem que vençamos, nem pelos meios deles. A meritocracia não nos contempla méritos, e quando o faz, é apenas para alguns poucos, para que se perpetue a mentira de que todos podem, e mesmo para esses poucos de nós, esse contemplar parece ser passageiro ou apenas por meio específicos. Mas o ovo nazista já está plantado de tal forma no seio do social brasileiro, que um negro agora passa a incomodar, inclusive, ao ser vencedor por meio da música ou do esporte.


     Os que passaram a criticar veementemente o resultado do Superstar se diziam admiradores e consumidores do rock. Passada meia noite, enquanto Lucas e Orelha comemoravam seu título, o Dia do Rock dava início, sobre o grito de muitos roqueiros internautas: o rock é branco, de gente bem abastada, de acesso econômico e cultural (segundo o que eles definem por cultura), de nível (sobre o que eles entendem e impõem como nível). O Dia 13 de Julho de 2015, no Brasil, já era então muito mais que o dia do Rock. Era o dia do rock posterior a uma derrota de uma banda de rock com uma legião de fãs (sem terem gravado sequer um grande álbum ou sucesso) em um programa tido como muitos que se dizem alternativos e admiradores desse estilo musical, como boçal e “popular”. O Dia 13 de Julho de 2015 no Brasil era o dia da reflexão sobre o Rock e sobre o Brasil, e a vitória de Lucas e Orelha na final do Superstar tem um enorme peso para que esta reflexão seja promovida na presente data e nas datas posteriores, como a de hoje, dia 14, onde dou inicio a esse texto. Fica a pergunta: se somos todos Maju, por que não somos todos Lucas e Orelha?




Continua...




quarta-feira, 8 de julho de 2015

Agnócristo/Sóscristos


AgnóCristo


Eu assumo
Não sei se vives 
Mas pelo que fostes em vida
Posso crer no amanhã
Sim
Há em mim temor
Mas eu bem sei
Eu sei que a minha vida
Não está nas mãos
Desse Jesus
Midiático
Que ao menos em mim
Morto está
Eu quero o da minha dúvida
Aquele que admiro pelo que foi em vida
E por me aceitar
Como homem
Vivo e dúvida
Que sou
E que fostes







Sócristos

Me surpreendi
Quando por um cristão
Fui acusado por corromper
E de fato corrompi
Toda a tal
Hermenêutica
Com minha maiêtica
Do maior dos corruptores

Minha sentença foi
Acusado de resumir
Tudo
Ao amor
Condenado pelos senhores
Tomei a cicuta
E fui
Recebido pelo Senhor

Ele me disse
Que não pequei
Apenas amei
E decretou-me o Rei,
Em segredo
Que é possível ser cristão
Sem ser cristão

FARISAÍSMO: A RELIGIÃO DOS MILÊNIOS - PARTE IV

     



     Agora que já temos algum domínio sobre a origem do termo “farisaísmo”, seu significado, a forma como as narrativas bíblicas apresentam esse termo (a principio de modo bem geral), e a contextualização sócio-histórica relacionada à forma como o termo é apresentado pelos autores nas narrativas canônicas, começaremos a trabalhar sobre uma interpretação, própria dos dias atuais, sobre o conceito de farisaísmo. 

     Nos dias atuais, é muito frequente, principalmente em debates que girem em torno da temática religiosa, vermos a utilização da expressão “fariseu” com a finalidade de apontar para uma possível ação, fala ou leitura de mundo que se apresente de uma forma contraditória e legalista para com a realidade que o cerca aquele que a defende, sendo esta atitude resumida como uma postura equivalente ao conceito de “hipócrita”. Isso sem dúvida alguma vem de encontro às origens do termo “fariseu” e a forma como as narrativas bíblicas apresentam o mesmo, deixando evidente a relevância em termos acesso às mesmas, para que possamos ter uma total compreensão frente o uso de tal palavra. Mas, seria mesmo o farisaísmo um sinônimo de hipocrisia? 

    A origem da palavra hipocrisia, que em nossos dias permeia a significância de fingimento em certas virtudes e credos que o individuo na verdade defende, mas não possui ou pratica, é derivada do latim e do grego. Como sabemos, o grego foi a língua predominante nos tempos de Cristo, onde estão os principais relatos sobre o farisaísmo. Nessa época, o significado de hipócrita era variado, conforme o idioma a ser usado para sua expressão. No grego, tinha o sentido de “ator”, por meio do vocábulo upokrinomai, que significa “desempenhar uma parte sobre um cenário” ou “assumir um caráter falso”. No hebraico, a palavra tinha um sentido um pouco diferente, sendo atribuída ao que era visto como uma pessoa sem lei ou sem Deus (ímpio). Logo, podemos concluir que os fariseus, que foram apontados por Cristo como hipócritas e que se tornaram sinônimo deste verbete em nossos dias, tinham um entendimento diferente sobre o significado de hipocrisia, herdado do significado da cultura judaica, o que irá nos auxiliar na compreensão de muitas coisas sobre eles e até mesmo sobre nós. Aqui, cabe uma reflexão sobre o que a nossa sociedade entende por hipocrisia hoje, o que outras sociedades presentes em nosso tempo histórico entendem por hipocrisia, o que eu como um indivíduo inserido em um determinado contexto social entendo e o que os outros indivíduos dentro deste mesmo contexto entendem sobre tal conceito. Com certeza essa reflexão evidenciará que não há uma homogeneidade quanto ao entendimento de “hipocrisia”, tal qual o mesmo não tinha aspecto de unanimidade nos dias de Cristo. Observamos aqui a influencia cultural sobre a construção linguística e a influencia da construção linguística, em alguns momentos, sobre o cultural. Mas, não vou me aprofundar neste quesito, deixando tal abordagem para os peritos em filologia. 

    O farisaísmo em si não apresenta aspectos de todo passíveis à críticas negativas. Alguns fariseus são apontados na Bíblia com ações virtuosas. Aqui já explanamos brevemente sobre a postura de Nicodemos, um fariseu que se propôs a ouvir as palavras do Cristo que era acusado pelos fariseus e sua crítica aos companheiros de movimento farisaico, que se propunham ou ao diálogo com Cristo de maneira tendenciosa, pré-dispostos a não compreender suas palavras, ou que o acusavam sem nunca terem se aberto a qualquer diálogo com ele. José de Arimateia é outro personagem bíblico identificado como fariseu. Foi reconhecido por especialistas no tema como um homem que seguia Jesus secretamente. Teve importante participação e destaque nas narrativas referentes ao sepultamento de Cristo. Tentou contribuir para que Jesus não fosse crucificado, fazendo uso de sua posição de influencia perante os doutores da lei judaica e Pilatos para tentar persuadi-los a inocentarem Jesus, o que acabou não sendo possível. Ao se deparar com o fato de que Cristo já havia sido morto, ofereceu-se para retirar e sepultar seu corpo, em um período onde os que eram crucificados pelo Império Romano  não tinham direito ao sepultamento e eram jogados para apodrecerem e serem devorados por animais. José pagou um alto preço por essa atitude, sendo perseguido e preso por muitos anos. Nesse episódio do sepultamento, diz a tradição que Nicodemos o acompanhou , ou seja, temos aqui dois fariseus que parecem não evidenciar, ou ao menos estarem conscientes, de uma condição de hipocrisia, segundo a concepção de hipocrisia grega. Talvez Nicodemos tenha realmente mudado de atitude, evidenciado uma prática que demonstrava plena compreensão sobre o “nascer de novo”, proposto por Cristo ao próprio, e convencido José de Arimateia, ou o contrário, em uma boa conversa como as que ele gostava de ter. Vale lembrar que segundo a tradição, Nicodemos também foi martirizado e José passou a ser preso e perseguido após o episódio da retirada do corpo de Jesus. Seria este o destino de todo o fariseu que se opõe ao que chamamos, a partir de então, “espírito do farisaísmo”? O termo será explanado posteriormente.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

FARISAÍSMO: A RELIGIÃO DOS MILÊNIOS - PARTE III



PARTE III

    Apesar de o Evangelho Segundo São João dar pouca ênfase ao partido farisaico, cabe salientar que ele apresenta um fariseu de uma forma positiva, que reconhecia a importância de dar alguma atenção ao caráter da mensagem de Cristo. O presente fato se dá no capítulo três deste mesmo evangelho com a narrativa entre Cristo e Nicodemos. A narrativa não evidencia a reação final de Nicodemos às metáforas e figuras de linguagem utilizada por Cristo. Teria sido Nicodemos um fariseu diferenciado, pré-disposto a entender o paradoxo do cristo sob seu “nascer de novo”, frente à literalidade legalista oriunda de um movimento farisaico? Bem, a narrativa do capítulo sete deste mesmo Evangelho evidencia Nicodemos não sendo mais o questionador, mas o questionado pelos adeptos da seita que professava, por ter se prestado a ouvir Jesus. Nicodemos, de maneira como que socrática[1], contra argumenta aos fariseus, questionando a conduta de julgamento deles sobre quem cumpre ou não a Lei. A narrativa evidencia o ato dos fariseus tomarem como tolos os que simplesmente se prestavam a ouvir Jesus, por uma questão acima de tudo, relacionada à xenofobia e aos conflitos e preconceitos de cunho étnico entre os povos daquela região e tempo histórico. Por fim, o capítulo nove do Evangelho Segundo São João narra a maneira inquisitória como os fariseus abordam o cego curado por Jesus no sábado, deixando clara a preferência dos fariseus ao cumprimento da Lei do Sábado ante a cura de um homem que não podia enxergar. Temos aqui um cego sendo curado e homens de visão que continuam doentes e se enxergar. Todas estas narrativas serão abordadas com mais propriedade posteriormente.


    Sobre o Evangelho de São João, faz-se necessário ressaltar a total diferença literária quanto aos três que o antecedem e sua prerrogativa em apresentar a divindade de Cristo perante as possíveis influências helenísticas[2] sobre o autor e seu tempo histórico. O estilo de João é tão peculiar que o mesmo ganha o conceito de Quarto Evangelho, distinguindo-o dos chamados sinópticos, apontando-o como único e completamente distante por sua especificidade narrativa, relacionado à trindade que o antecede.


    Quanto à presença do farisaísmo nos demais livros do Novo Testamento e suas narrativas, temos poucas, mas relevantes passagens textuais, que muito contribuem para o primeiro passo frente o desenrolar destes textos, que se dão na compreensão do que ver a ser o movimento farisaico.


    No livro conhecido como Atos dos Apóstolos, onde é descrita a Era Apostólica[3], temos apenas três capítulos onde o farisaísmo é citado de alguma forma. Vale lembrar que a obra é tradicionalmente reconhecida como de autoria do apóstolo São Lucas, sendo a continuidade do Evangelho que leva o nome do mesmo autor, que como dissemos anteriormente, formavam um único livro.


    Lucas era adepto dos ensinamentos do apóstolo São Paulo, portanto, faz-se compreensível que o apóstolo seja o protagonista de boa parte das narrativas contida no livro de Atos. O primeiro texto a abordar o farisaísmo neste livro, está presente no capítulo quinze. Este capítulo narra a participação de São Paulo no Concílio de Jerusalém[4], onde o autor registra a presente tensão entre os primeiros cristãos que haviam acabado de sair do judaísmo e os gentios (cristãos que não eram judeus). A principal polêmica girava em trono da circuncisão[5], onde alguns entendiam que era necessária a manutenção da prática por parte dos que não eram judeus e estavam adentrando ao círculo dos que professavam a fé no Cristo e outros não. Neste Concílio, onde participaram também São Pedro São Tiago (o Justo), foi decidido que os gentios não precisariam se submeter às exigências da Lei de Mosaica. Pois bem, aqui está um texto essencial para compreendermos do que se tratava e qual era a postura do farisaísmo, também influente entre os primeiros cristãos conversos.
    Já havia sido observado no início destes textos, que a principal característica do movimento farisaico, era a forma veemente pela qual observavam a Lei Mosaica. No Concilio de Jerusalém, isto fica evidenciado por serem justamente os cristãos que haviam acabado de “romper” com o judaísmo e que ainda tinham alguma ligação com o farisaísmo praticado até então, a reivindicar que todos os gentios[6] fossem circuncidados, segundo a tradição da Lei Mosaica. O assunto rendeu grande discussão entre os apóstolos. São Pedro foi o primeiro a se opor aos que tinham ligação aos fariseus nesse sentido. Tiago, o segundo. Observem no presente texto que Paulo, que era fariseu de nascimento, não se pronuncia a respeito.


    A narrativa exposta no capítulo vinte e três do mesmo livro, traz a narrativa da prisão de São Paulo em Jerusalém. A principal acusação dos judeus sobre Paulo se dá justamente sobre ser ele um pregador dos não cumprimentos da Lei Mosaica. Outra acusação tida como grave ao apostolo São Paulo, foi a de ser um profanador do Templo, pelo fato de introduzir gregos ao mesmo. Paulo foi espancado por levar um grego ao Templo, segundo contavam seus acusadores. Paulo solicitou então falar aos seus irmãos judeus, em sua língua. Nos capítulo que antecedem a narrativa do capítulo vinte e três, Paulo não consegue dialogar de maneira pacífica com os judeus, mas consegue se livrar de uma punição maior ao lembrar aqueles iriam castigá-lo, de que era cidadão romano de nascimento.


    Diante do conselho que o ouvia afim de julgá-lo, isto já no capítulo vinte e três, estando São Paulo diante de judeus, tano fariseus quanto saduceus[7], teve a astúcia de fazer uso desta tensão jogando os fariseus contra seus rivais saduceus, ao se afirmar fariseus de nascimento, o que era verdade. Voltaremos nesta passagem posteriormente.


    Nos demais livros que compõem o Novo Testamento não há citação direta ao farisaísmo, com exceção ao capítulo três da carta de São Paulo aos Filipenses, onde o mesmo mais uma vez faz menção à sua origem farisaica. Aqui podemos entender um pouco das possíveis razões pelas quais Paulo, antes Saulo e fariseu, perseguiu, prendeu e matou tantos judeus conversos PA pregação dos apóstolos. O que é de extrema relevância é que São Paulo passará a exercer forte crítica ao legalismo característico dos partidos não oficiais da religião judaica que ainda era extremamente influentes entre o povo judeus em seus dias e também entre os primeiros judeus convertidos á fé cristã, tendo feito total diferença para a concepção de fé de rompimento com a religião dominante de sua região e nação, aparentemente. Veja bem, eu disse: aparentemente.







[1] Referência à “maiêutica”, método do filosofo grego Sócrates em fazer com que alguém alcance uma verdade objetiva, ou que perceba a ilusão sobre as verdes que está proferindo, por meio de perguntas.

[2] Referência ao período de grande expansão da cultura grega sobre outros povos, conhecido como Período Helenístico.
[3] Basicamente é o período de organização dos primeiros cristãos sob a sua prática de fé, desde a ascensão de Cristo até o Concílio de Niceia.

[4] Reunião entre os primeiros cristãos para decidir os rumos de sua fé no que dizia respeito ás práticas do judaísmo serem aplicadas também aos que não eram judeus e estavam se convertendo à fé cristã.

[5] Ritual de inclusão na comunidade judaica que consistia em uma cirurgia que retirava o prepúcio do órgão genital masculino.
[6] O que não era israelita e professava outra fé que não era a judaica.

[7] Partido não oficial dentro da religião judaica que rivalizava com os fariseus.